30 Anos: Uma Varda


Ulysse de Agnès Varda

Existe ainda hoje em muitas pessoas uma teimosia em considerar a "política dos autores" um erro por dar importância demais ao diretor numa arte que seja necessariamente coletiva e participativa, e ao mesmo tempo industrial e cara como o cinema. Alega-se que nada está mais longe da idéia do "artesanal" que o fazer cinematográfico, e portanto não se pode assinar um filme. Complementa-se ainda dizendo que a política dos autores permite que crie-se obras "acima do bem e do mal" (ou seja, cineastas-mito que nunca podem fazer um mau filme) ou obras indefensáveis (ou seja, cineastas cuja ideologia não permitiria jamais um acerto).

Tudo isso parece muito tolo, porque ao invés da "política dos autores", o que isso renega é sua má utilização por alguns. É óbvio que o cineasta não pode controlar cada aspecto de um filme, é óbvio que da sua colaboração com roteiristas, técnicos e atores específicos podem resultar aspectos novos na obra, é óbvio que todo cineasta pode a qualquer momento fazer um filme ruim ou um filme bom. Tudo isso, repito, é óbvio. Só que é igualmente óbvio que, independente de quão colaborativa ou industrial seja uma obra cinematográfica, existe por trás dela uma mão que a coordena nos seus aspectos mais básicos, e esta é a do(a) diretor(a). E igualmente óbvio é que não trata-se apenas de uma mão, mas de uma cabeça, uma linha artística e ideológica, uma forma de olhar o mundo. E ao trazer isto à tona é que a "política dos autores" foi inestimável.

Tudo isso pode ser provado de forma muito mais simples e direta do que minhas vãs palavras. Basta pegar a obra em curta metragem de Agnés Varda, que foi exibida no 12º Festival de Curtas de SP. O que impressiona no trabalho de Varda em curtas é que ele se espalha por 30 anos de constante produção (de 1957 a 1987 eram as obras exibidas em SP), com os mais diferentes objetivos (desde documentários de época até ensaios poéticos até mesmo filmes de encomenda), e com os mais distintos formatos, orçamentos e equipes. Da mesma forma, com os mais diferentes resultados. E, no entanto, existe ali claramente o olhar de uma pessoa, inequivocamente de uma mulher, que não pode ter sua assinatura confundida com a de mais ninguém. Desde os primeiros trabalhos do fim dos anos 50, em primeira instância desinteressantes documentais quase institucionais sob encomenda, até um longo curta (30 minutos) de ficção de 1984, percebe-se as mesmas obsessões buriladas ao longo do tempo, ainda que com diferentes domínios e utilização de linguagem.

Antes de tudo, a preocupação com a relativização de uma suposta Verdade. Isso fica muito mais forte nos trabalhos documentais, sempre absolutamente subjetivos e pessoais, mas também trespassa os trabalhos de ficção, onde a verdade posta em prova é a da memória, da lembrança, do tempo. Os filmes dos anos 60 e 70 em especial (e jamais por acaso, é claro) impressionam pelo tom obsessivamente pessoal, um discurso em primeira pessoa como poucos, onde mesmo o que seja seu filme mais documental assume-se como um ensaio e jamais um "documento". Talvez o mais claramente assim seja Oncle Yanco, de 1967.

Há ainda uma perspectiva fortemente feminina nos seus trabalhos, que torna-se francamente feminista nos anos 70. É como se cada filme dissesse no seu início: "Eu, Agnés Varda, MULHER, acho o seguinte:..." O mais representativo destes trabalhos obrigatoriamente seria o datado, mas não menos adorável, Réponse de Femmes, de 1975.

Varda usa ainda todos os truques da linguagem do cinema, que fazem dos seus filmes pequenos quebras-cabeças sempre deliciosos de montar. Seja a narração em off onipresente em seus documentários, seja com uma "mise-en-scéne" peculiar nos trabalhos de ficção, o fato é que fica claro o tempo todo um olhar educadíssimo na linguagem cinematográfico, um domínio completo de seus truques, clichês e poderes de sedução. A pequena brincadeira de 1962 Les Fiancés du Pont Mac Donald (com deliciosamente jovens Godard e Anna Karina como protagonistas) é o mais óbvio representante desta característica, mas certamente já nos seus documentários de 1958 (Du Coté de la Coté ou L'Ópera-Mouffe) até uma ficção de 1984 como 7 P., Cuis., S. de B.... à Saisir percebe-se a mão da cineasta. O último filme, T'as de Beux Escaliers, Tu Sais...é uma homenagem direta ao cinema que simplesmente torna fato um amor que perpassa todos os outros filmes.

Por isso tudo, talvez o melhor dos seus curtas seja o que mistura mais brilhantemente cada uma destas características espalhadas, aquele que é a síntese disso tudo, o belíssimo Ulysse de 1983. Nele, Varda corre atrás do passado, tentando reencontrar duas figuras que protagonizaram uma fotografia tirada por ela 30 anos antes. A partir desta história absolutamente pessoal, narrada como tal, ela consegue fazer um fantástico jogo de tempo e memória, que relativiza a noção do passado como algo estanque e fixado na história. O seu jogo com o imaginário é poesia pura, pedindo ao espectador que embarque numa viagem deliciosa junto a uma obcecada em caçar este fugidio passado inexistente. O filme é uma, adequada como síntese, mistura de ficção, documentário, opinião e imaginação. Nele, ela mostra todas as suas preocupações que compõem afinal o que possa ser encontrado como a assinatura de Varda. Uma assinatura com várias canetas, vários orçamentos, vários níveis de cansaço de mão e ajuda de outros, mas ainda assim perfeitamente reconhecível, como só aquela de uma autora, sim, de filmes.

Eduardo Valente