Desejo
Insaciável,
de Claire Denis
Trouble Every Day, França,
2001
Trouble Every Day
não é a história de canibais, de estranhos viciados
em carne humana, como vende a publicidade atual em torno do filme. Como
todo outro filme de Claire Denis, é um filme sobre a carne e seus
impulsos mais irracionais, seja a criminalidade serial (Noites Sem
Dormir), seja o racalcamento homossexual (Bom Trabalho). É
um filme feito com a câmera, coisa que não se pode
dizer da maioria do cinema feito atualmente. Isso não quer dizer
que seja um filme sem narrativa, mas a narrativa certamente sofre mudanças
que podem incomodar um espectador intransigente e mais acostumado a filmes
de Russell Crowe que eleja Woody Allen como o limite máximo de
experimentação formal permitida. Só que Claire Denis
vai além. Trouble Every Day é um filme à flor
da pele, ao mesmo tempo delicado (como a bela música dos Tindersticks
que abre e fecha o filme) e selvagem, onde se fala muito pouco, se age
muito pouco, mas quando se fala ou se age, é de uma vez por todas.
Começamos o
filme numa estrada. Béatrice Dalle à beira dela, tentando
atrair motoristas de caminhão. Ato sempre antes da explicação,
alguns momentos depois ela está comendo carne humana. Um homem
vem procurá-la. Somos transportados para um avião que se
dirige a Paris. Vincent Gallo vai ao banheiro. Ele e sua esposa estão
em caminho da lua-de-mel em Paris, mas há visivelmente algo errado
com ele. O sentimento geral que o filme traz é de mal-estar. Não
o mal-estar deplorável e supostamente malicioso de um Seven
ou Hannibal, mas a impressão que esse mal-estar nos engloba
e nos observa, que essa possível doença que permeia o filme
não está tão distante de nós. De fato, ela
pode estar ao lado, ou mesmo em nós.
Trouble Every Day
é uma ficção científica. No plano da história,
ela incorpora todas as características do gênero, mas o tratamento
que a narrativa impõe é outro. Próximo dos relatos
de doença de um William Burroughs com quem Claire Denis
partilha as fixações pelo corpo masculino, pelo sêmen,
pela pele, pela doença mental e física... , o filme
tenta reconstituir um acontecimento fatídico, um momento no passado
em que os personagens do filme se separaram por motivos de traição
(tanto conjugal quanto científica). Esse acontecimento rendeu não
só o esfacelamento de uma relação, mas o nascimento
de uma terrível doença cronenberguiana que
garante a seu hospedeiro uma avassaladora fome sexual e uma decorrente
vontade de mastigar literalmente seu parceiro na relação.
Fragmentário, o roteiro só permite que o espectador entenda
todos os lances aos poucos, e mesmo assim alguns não completamente.
Trouble Every Day não é um thriller de suspense,
como poderia fazer crer. Claire Denis conduz o filme como um drama, como
a busca pessoal de um homem, que ama profundamente sua esposa, para livrar-se
de uma doença que pode colocá-la em risco (logo no início
do filme, uma mordida no braço dela já revela o perigo).
Claire Denis faz com
Trouble Every Day um filme menos abstrato do que Bom Trabalho,
mas ainda assim um atordoante filme sobre os corpos, seus limites e seus
desejos, e tem momentos de plasticidade incrível. O que torna Trouble
Every Day tão complicado para certos espectadores é
que não há refluxo moral: a história é guiada
por Vincent Gallo, um dos canibais. A identificação deverá
ser feita em cima dele, sem escapatória. O espectador fica fora
de casa, ao abrigo da tempestade por vir. As belas e inocentes mulheres
do filme (Trissia Vessey, Aurore Clément, duas beldades filmadas
generosamente por Denis) de certa forma aceitarão o jogo dos desejos:
uma sucumbirá ao canibal e pagará por isso, a outra aceitará
o que o futuro lhe destina... Trouble Every Day é um filme
sobre corpos, e dedica a eles alguns dos momentos mais belos vistos no
Festival do Rio. Seja na cama, sendo delicada e apaoxonadamente tocados,
ou ensangüentados e destruídos, são eles a mola mestra
do filme, o ponto onde tudo começa e acaba. O corpo é o
lugar onde não há limites entre homem e animal, e é
justamente essa faceta o que é um homem encarado como o
animal que é? que mais interessa ao cinema de Denis. Um
filme perturbador, não pela estranheza dos canibais, mas pela naturalidade
de nós mesmos, animais.
Ruy Gardnier
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