"Publicar aquilo que nos interessa"
Entrevista com Charles Tesson, redator-chefe
dos Cahiers du Cinéma – 07/10/2001



Completando 50 anos de idade, os Cahiers du Cinéma são objeto de uma homenagem pelo Festival do Rio BR 2001. Para celebrar o aniversário da mais importante revista de cinema de todos os tempos, Edgardo Cozarinsky, escritor e realizador (o excelente Cidadão Langlois), realizou um filme sobre a revista. Para apresentá-lo e representar a revista na homenagem, o Festival trouxe Charles Tesson, crítico desde o final dos anos 70 e atual redator-chefe da revista. Tesson foi o responsável por dar uma nova guinada aos Cahiers du Cinéma em seu cinqüentenário e recolocar a revista como centro forte de debates intelectuais (não somente sobre cinema) na França. Na "nova fórmula" da revista, algumas sessões foram criadas e algumas outras recuperadas da história da revista. Além da sessão de críticas, constante desde quase sempre (a única exceção é a da época militante, que suprimiu as críticas dos lançamentos), os Cahiers de hoje apresentam a sessão "Evénement", onde um acontecimento importante no mês (um filme, um tema, um acontecimento de fato) recebe forte atenção por parte da redação; "Le Cinéma Retrouvé", para falar da história do cinema; "Répliques", para os textos maiores e mais analíticos; retomando uma tradição dos anos 80, eles reeditam o "Journal des Cahiers", uma espécie de revista dentro da revista onde inúmeros temas são tratados, de notícias da atualidade até ensaios sobre cinemas de outros países; além do famoso "Conseil des Dix", quadro de estrelinhas ao fim da revista, muito famoso nos anos 50 e 60, que é reeditado tal qual, com alguns redatores dos Cahiers e outros críticos de outros jornais e periódicos.

* * *

RG: Cahiers du Cinéma, 50 anos... há um peso do nome, há o peso da tradição. Como é conjugar essa tradição da revista com o cinema que muda diariamente, com as novas tecnologias, com o novo estatuto de todo o audiovisual, com o digital, as imagens de síntese, os videogames?

CT: Há tudo isso que você disse no cinema futuro, ou seja, o digital, os jogos de videogame, mas da parte da tradição dos Cahiers, há algumas regras e princípios que são instrumentos de pensamento que não foram necessariamente concebidos por esses novos objetos de que você fala, mas que são sempre válidos hoje. A primeira coisa é que há certos princípios que fazem com que os Cahiers sejam os Cahiers e não outra revista qualquer. Inicialmente, os Cahiers jamais se interessaram unicamente pelo cinema, ou pelo cinema como a especificidade técnica, econômica, até artística. Os Cahiers se interessam em tudo que diz respeito à imagem, diria Bazin já no começo. Logo, podemos nos interessar pela televisão, podemos realizar uma edição sobre os acontecimentos de Nova York, porque não é a forma cinematográfica, o filme enquanto filme em seus termos econômicos, etc., que nos interessa primeiramente, aprendemos isso muito cedo com Bazin. A força de André Bazin, mesmo se não vivemos as coisas da mesma forma elas ainda dizem respeito aos Cahiers hoje, é que o fato que uma imagem exista como um registro da realidade faz com que não percebamos a realidade da mesma forma. E isso é uma coisa apontada rapidamente por Bazin, você sabe tanto quanto eu, que faz com que a relação com o cinema é determinada por essa verdade, o que faz com que nos interessemos por coisas que estão "fora" do cinema. E isso é uma coisa que faz com que, depois de Bazin e seu cinema impuro, os jogos de videogame não são cinema, mas percebe-se que nos projetos de videogame há referências cinematográficas, que o relato dos filmes americanos, a maneira de avançar a história é influenciada pelos videogames. Então, essa noção de impureza, de não-especificidade do cinema enquanto tal é alguma coisa que nos permite imediatamente acolher todas as formas. Outra coisa que seguimos como regra, é que os Cahiers rapidamente, em relação à política dos autores, ou seja, a mise-en-scène é o estilo. É a mise-en-scène que faz a diferença, não é o roteiro, não é a mensagem. Como dizia Chabrol: "não há grandes ou pequenos temas, há grandes e pequenos filmes". Ou seja, não é porque há um tema nobre que vai necessariamente haver um grande filme. Os Cahiers desconfiaram, por exemplo, de Fellini, mas dizer que desde que haja um universo visionário, isso é um autor. Não. E não é porque se adapta um livro importante que se faz uma grande obra cinematográfica. Logo, há o gosto por uma forma trivial, popular, série "b", que faz com que internamente os Cahiers não defenderam uma idéia "cultural" e nobre do cinema, mas também uma idéia popular e trivial. Isso foi algo percebido muito cedo, e que nos ajuda hoje a notar que o cinema se renova muito pela base, pela indústria e pelos assuntos industriais: a tecnologia digital, os videogames, e é por aí que o cinema se mexe e muda. Porque é uma concepção de cinema que não é fechada em torno do cinema, mas aberta o suficiente para ver o que se passa ao lado dele.

RG: Nós observamos não só uma abertura aos jogos de videogame e nas tecnologias digitais, mas aos jogos de videogame especificamente no cinema, como no caso de Lara Croft ou Final Fantasy. Vocês dedicaram uma edição especial inteira às "fronteiras do cinema".

CT: Eu dirigi essa edição porque eu achava que era importante falar dessas coisas, dos filmes feitos na internet, videogames... Eu escrevo sobre os games porque observa-se muito a influência do cinema. No jogo Lara Croft, não no filme, temos um mundo extremamente lento, ela que, aparecendo sempre de costas, caminha, toma os espaços, ataca alguém. Logo, uma experiência do espaço e do tempo que é mais próxima do cinema clássico do que o cinema americano hoje que, decupado demais, faz com que não haja mais nos filmes de ação uma sensação de um espaço com três dimensões e de um tempo. Mas Final Fantasy é outra coisa completamente diferente, pois há momentos em que nos esquecemos que são personagens digitais, não em todos os momentos, mas quando eu assisti ao filme, houve momentos em que eu pensava ver um ator e eu esquecia que eram atores feitos por computador. Em momentos, vemos que certos movimentos são cadenciados demais, e a imagem não funciona. Mas o que é curioso num filme como Final Fantasy é que é quase como Tron, um filme de quase vinte anos. Bizarramente, o que se nota no filme é que não há olhar. Do ponto de vista digital, os olhos são muito bonitos, a pele, os cabelos, com movimentos magníficos, mas em compensação o olhar não é, eles não possuem olhar. Temos um personagem aqui e um outro aqui, mas é como se eles não se vissem. Logo, não há espaço, não há olhar, e todo o cinema é construído em cima do olhar, do olhar dos personagens, do olhar sobre os personagens, e isso faz com que o filme não funcione. O que é mais esquisito e funciona melhor é o que já se faz há muito tempo: Nova York destruída, o dragão em superimpressão, muito bonito, mas no plano humano, há algo que não dá certo.

RG: Vocês vêm se abrindo, me parece, mais do que antes, à televisão, com o "Journal des Cahiers". Sempre houve uma preocupação, desde os anos 60, depois com Jean-Paul Fargier. Depois, a produção parou, restando unicamente a coluna de Joël Magny, sobre filmes na televisão. Com a volta do "Journal", me parece que vocês sentiram novamente a necessidade de falar da televisão, da sitcom como a nova substituta dos filmes B americanos...

CT:... e da comédia americana...

RG: ... e também tratando temas que o cinema já tratou antes e abandonou.

CT: É verdade. Sobre a televisão, os Cahiers falam desde os anos 50, de fato. André Bazin se interessava muito pela televisão mais pelo lado pedagógico e pela educação do público. Ele acreditava na televisão, no início, como uma espécie de missão, pois ele era muito assim, é preciso ser crítico, é preciso fazer amar os filmes para elevar e formar o público. Ele era muito educador, Bazin. E ele acreditava que a televisão ao vivo era o acesso ao saber. Éric Rohmer trabalhou muito para a televisão...

RG: Rosellini também...

CT: Rossellini, certo, e Rohmer para a televisão escolar, fez muitas coisas. Isso remonta àquela época. Sobre a televisão, nós falamos também sobre os esportes, o que nos interessava era o fenômeno do "ao vivo". Ou seja, no cinema nos vemos as imagens, mas é aquilo que foi filmado antes e o tempo da imagem não é o mesmo, é uma arte da morte... Você vê Robert Mitchum, você vê John Wayne, você acredita que eles estão lá quando o tempo deles já se foi. O ao vivo, a telepresença, pelo fato de que aquilo que você vê na imagem é aquilo que o corpo faz naquele momento muda completamente as coisas e isso é muito importante. Sobre a televisão nos Cahiers, falamos sobre as séries de TV americanas. É verdade que nós as assistimos como víamos a séries "b" nos anos cinqüenta. E depois houve Twilight Zone, Bonanza. E nós chegamos agora a um estado mais serrado porque a televisão copiou o cinema, e como a sitcom tornou-se um tal fenômeno, agora é o cinema que se dispõe a copiar a série televisiva americana. O "Journal des Cahiers", quando era feito nos anos 80 foi feito para observar como - aí também é como eu dizia no início, os Cahiers não se interessam pelo cinema como aquilo que "é cinema" - o cinema é atravessado por muitas coisas, a realidade, o mundo, pela televisão, por muitas correntes que o ultrapassam, de modo que não podemos tratar de cinema se, por exemplo, não vemos o futebol, ou se nos interessamos em ver hoje as sitcoms, os videogames e ver aquilo que atravessa o cinema e ver como o cinema evolui assim.

RG: É muito importante para nós, porque o Brasil é um país que em termos de imagem é televisão pura...

CT: ...com as novelas?

RG: Sim, não somente as novelas como a produção em geral da Rede Globo, é a única difusora do Brasil inteiro. Os filmes brasileiros só podem ser vistos nas capitais, Rio, São Paulo, Porto Alegre, Recife, Salvador, mas nunca nas cidades menores. Aí, é sempre a televisão. A gramática audiovisual brasileira é a televisão.

CT: Eu não conheço muito bem, mas é exportada quase mundialmente, não, a forma gramática televisiva do Brasil? É exportada por toda a América Latina, mas também em todas as televisões do mundo. Há as séries americanas e há o Brasil, que é um dos grandes fornecedores de audiovisual de televisão, não?

RG: Sim.

CT: Vocês se interessam por isso, vocês escrevem sobre essas coisas?

RG: Sim, nós tentamos. Há mesmo uma certa forma de ser esnobe com isso, e tentamos não sê-lo. Há grandes preconceitos, o cinema novo elevou-se contra a chanchada... Eu entrevistei recentemente Nélson Pereira dos Santos e ele diz lá que a novela é como a chanchada, que se faz cinema contra isso. Progressivamente, Contracampo tenta entrar no meio da televisão, porque achamos que não conseguimos falar de cinema sem a televisão. Em termos econômicos, há inclusive uma lei muito importante em debate que tenta fazer como na França, onde 4% da receita audiovisual é revertida para o cinema nacional, mas o "lobby" das cadeias de televisão é forte demais, e parece que nada irá acontecer.

CT: É uma pena.

RG: Os Cahiers foram muito criticados pela nova fórmula da revista e pela compra pelo grupo Le Monde, por certas mudanças, como o "Conselho dos Dez", a diminuição do tamanho das críticas, as crescentes páginas dedicadas à publicidade...

CT: De fato, a nova fórmula dos Cahiers foi feita há um ano. Quando o Le Monde chegou, os Cahiers du Cinéma estavam numa grande dificuldade financeira, e um de nossos sócios proprietários queria largar os Cahiers e parar. Então, o Le Monde chegou num momento em que precisávamos de um sócio, de dinheiro para relançar a revista que estava em crise ou, em todo caso, frágil na medida que havia perdido uma média de 30 a 40% de seus leitores, isso em coisa de dez anos, o que é muita coisa. Quando o grupo Le Monde aceitou comprar os Cahiers, eles tinham em mente não apenas sustentar a revista mas relançá-la, através de uma reforma. mas essa reforma fomos nós mesmos que a fizemos. É verdade que há muita publicidade, mas eu acho preferível, antes de ter que vender a revista a 50.000 pessoas, eu prefiro vendê-la a 35.000 com as publicidades e fazer tudo que eu quero editorialmente. Antes de mudar de cenário e ter que vender para 50.000, o que me parece difícil na França, prefiro ter as publicidades, que trazem dinheiro. Há mais autonomia, digamos, nesse caminho. Mas, ao mesmo tempo, as publicidades chegam num momento onde os Cahiers se tornaram uma revista um pouco confidencial na medida em que o debate crítico na França - há os jornais diários, há o Libération, há outras revistas - e os Cahiers são um pouco a revista de referência graças ao passado prestigioso, mas não é uma revista que estava no centro dos debates críticos e polêmicos. Nós refletimos muito nisso, e a revista que você vê, conhece, ela toma partidos algo radicais. Como você notou, as críticas têm menos importância em termos de espaço, mas em compensação falamos de todos os filmes da atualidade, eles compõem o corpo da revista. É uma escolha, pois há cada vez mais filmes sendo lançados, e ao invés de aumentar o número de páginas para falar dos filmes, diminuímos. Porque temos o sentimento que os Cahiers não devem somente submeter-se às atualidades midiáticas - nós devemos tratá-las, porque o leitor dos Cahiers espera isso da revista, esse papel de prescritor, um papal de guia para o leitor, é preciso desempenhá-lo e nós o assumimos -, mas ao mesmo tempo, nós sentimos que os Cahiers serão melhores à medida que propormos aquilo que são as atualidades para nós, aquilo que não se pode encontrar em outro lugar. Na França, quando um filme sai, temos a entrevista com o ator, com a atriz, você os vê na televisão, nos jornais diários, nas revistas, em qualquer lugar há sempre a mesma matéria no mesmo momento. Com a nova fórmula, não temos tanto o sentimento que se tinha antes, que eram os "Cahiers des films", mas os Cahiers du Cinema, que fala também de filmes, mas que uma revista como os Cahiers deve compreender todos os aspectos do cinema, e até além do cinema - a política, as atualidades, a televisão. O processo Barbie na televisão, nos o tratamos. Na nova edição procuramos os arquivos da Guerra da Argélia, nós tentamos nos interessar pelo cinema além de uma espécie de atualidade midiática. E eu acho que isso vem funcionando, porque os Cahiers tinham o defeito de ser um pouco do lado "moda intelectual parisiense", ou esnobes, como você disse antes. E eu acho que os Cahiers deixaram de lado erradamente algumas coisas no passado. Perderam o acontecimento na França do cinema documentário, que foi muito importante nesses últimos anos. Os Cahiers não deram nada porque talvez não foram muito sensíveis ao que acontecia no mundo ao nível político. E houve cineastas na França que se mobilizaram, acho que você deve ter ouvido falar nisso, pelo trabalho dos imigrantes, os "sans-papier", fizeram uma medida para mandá-los embora e os cineastas protestaram contra ela. Logo, houve um engajamento político dos cineastas, e todas essas coisas são efetivamente importantes, e a nova fórmula não é perfeita, ela ainda tem muito ainda a melhorar, mas ela permite encontrar de tudo um pouco do cinema: "Le Cinéma Retrouvé"(O Cinema Redescoberto) para falar da história do cinema, "Evénement"(Acontecimento) , "Répliques"(Réplicas) para os textos mais transversais. O que não falamos antes é que em setembro e outubro há muitos filmes muito bons saindo na França. Em três meses, temos Straub, Oliveira, Rivette, Rohmer, todos os filmes, e temos que fazer um número para falar de todos esses filmes. Depois, em fevereiro, em março, em abril, antes de Cannes, não há nada. Então, fazer de filmes médios o acontecimento do mês porque não há nada mais é ridículo. Então, o que é preciso fazer é: se não existem filmes importantes saindo nesse mês, não importa, faremos alguma outra coisa importante no Acontecimento. Ou fazer uma entrevista com um cineasta que não faz filmes há 5 anos, como fizemos com Maurice Pialat, porque tínhamos vontade de encontrá-lo. Nos interessa o cinema redescoberto, Fuller e outros, e faremos uma edição mesmo que os filmes que estréiam sejam fracos. Assim, nós não somos tão dependentes dos lançamentos de filmes, sem estar sobre a pressão da qualidade dos filmes.

RG: Eu queria retomar uma coisa que você tinha dito antes, sobre a diferença dos Cahiers para as outras revistas, a convicção que o cinema é o mundo, e que há um laço que une os dois – que é uma convicção baziniana, rivettiana também, pois os textos mais importantes publicados nos Cahiers sobre essa relação são de Rivette, "Da abjeção", "Carta sobre Rossellini". Como essa relação com o cinema é diferente, vocês sentem a necessidade de ir de encontro a pensadores, filósofos, como vocês fizeram com Foucault, Deleuze, Derrida...

CT: Com Derrida nós fizemos uma entrevista, não faz muito tempo, mas os Cahiers nunca foram derridianos. É um filósofo muito popular nos Estados Unidos, mas não muito na França. Através do André Bazin, os Cahiers foram muito fenomenologistas, de fato. O pensamento baziniano de cinema deve muito à fenomenologia, de Husserl, de Merleau-Ponty, A Fenomenologia da percepção. Há um próprio fundo fenomenológico próprio aos Cahiers desse período. Mas quando você fala da relação de Bazin do cinema com o mundo, eu diria que há mais que isso: o que dava gargalhadas a outras revistas, é que nós defendíamos Bresson, Dreyer, por exemplo. Enquanto revistas como a Positif, que dizia: "nós somos surrealistas, somos anticlericais, rimos de Dreyer e isso tudo". Eu acredito que os Cahiers defendendo-o tocaram uma verdade do cinema, e essa verdade é da ordem da crença. Ou seja, ver um filme é crer naquilo que se vê, e que sem a relação à crença, a relação à ficção o prazer do cinema não existe. E isso é uma coisa de fundamental, a crença, não da ordem do saber mas da crença. Sobre a questão da filosofia, ela é importante para os Cahiers, desde Bazin. Os Cahiers sempre viveram sob contradições, sempre se contradisseram sem encontrar a verdade, e é por isso que eu acredito que ela é uma revista viva, são hoje e eu espero que sejam por mais muito tempo. Reclamam dos Cahiers, "Ah, mas eles mudam o tempo todo, eles foram pró-Hollywood, pró-cinemas novos, cinema clássico com Rohmer, modernidade com Rivette, pela política de extrema esquerda, pela cinefilia". Mas há acima de tudo duas contradições nos Cahiers e que são fundamentais à revista e jamais poderão ser resolvidas. Podemos pensar o cinema com o cinema? Ou seja, sendo cinéfilos amamos o cinema e sendo cinéfilos podemos falar sobre o cinema porque não amamos nada além do cinema? Ou, para pensar o cinema, precisamos procurá-lo na psicanálise, na história da arte, na filosofia, em todas as ciências humanas. E quando você observa a história dos Cahiers, há momentos efetivamente em que nós apenas nos nutrimos de cinema, da cultura da cinefilia, e outros em que procuramos em outro lugar, na história da arte, do maneirismo, Deleuze, a relação para pensar o cinema. Os Cahiers não têm uma verdade pronta, jamais pensamos que "o cinema é isso" e não nos movimentamos mais. Nós procuramos, erramos, fazemos marcha-a-ré, mas ao menos exploramos, é uma aventura, é a aventura do pensamento que muda o tempo todo, aliás. Eu prefiro as aventuras do pensamento ao terrorismo da verdade, "eu a detenho e passo a gerá-la". Para mim, isso é o horror.

RG: ...É quase uma morte...

CT: ...É uma morte, certamente. É o saber universitário, de uma certa forma, um saber já constituído. A forma dos Cahiers é que nós sempre tivemos vontade de explorar e contradizer aquilo que os outros tinham explorado.

RG: É um pouco uma forma-Godard, que dão a identidade com a revista, porque Godard é um cineasta que sempre ensaia fazer filmes e mostra esses ensaios.

CT: Sim. Ele é um companheiro de percurso dos Cahiers du Cinéma, no sentido que os Cahiers dialogaram com Rossellini, com Renoir. Com Rohmer também, mas em 1968 a revista se desentendeu com ele e não falou mais dele. Ele não gostava de 68, ele detesta o novo e o progresso. A ver A Inglesa e o Duque, a idéia de que antes era melhor. Até Truffaut, os Cahiers passaram sem ele por muito tempo, só retornando à época de O Último Metrô. O único que os Cahiers continuaram a se interessar foi Godard. E é verdade que, quando se observa a evolução de Godard: a nouvelle vague, o sonho de Hollywood, O Desprezo, o engajamento político de 68, o experimento Dziga Vertov, a televisão, o retorno ao cinema, Isabelle Huppert e Salve-se Quem Puder (A Vida). Ao mesmo tempo em que Godard faz Salve-se Quem Puder, os Cahiers fazem o "Petit Journal" e retornam ao cinema como ele, Godard, retorna ao cinema. É perturbador observar como os Cahiers estiveram síncrones com a maneira de Godard de produzir. Quando os Cahiers eram uma pequena célula radical, Godard estava em Grenoble, fazendo a Sonimage, etc., é de fato surpreendente.

RG: Hoje me parece que é a primeira vez que vocês não estão totalmente de acordo com Godard, que redatores como Burdeau e você não têm exatamente a mesma imagem de Godard...

CT: Como você percebe isso?

RG: Eu acho que isso aparece nos melhores da década, quando cada redator escolheu um filme diferente de Godard... Nouvelle Vague, For Ever Mozart, História(s) do Cinema... Pelas recepção dada a Éloge de l'Amour, através das estrelas, sente-se que os Cahiers não aceitam muito bem essa forma quase religiosa da imagem do último Godard.

CT: Sim, sim... É verdade que isso mudou. Houve uma época em que se alguém dissesse que não gostava de Godard, ele não escreveria mais nos Cahiers. Era quase uma blasfêmia. (risos) Hoje, isso mudou muito. Inclusive em relação com Straub, mesmo que gostemos muito de seu trabalho. Sente-se que agora Godard intimida menos, que podemos notar que ele repete seus filmes, seus filmes não têm mais a força de antes, mesmo que eu ainda ache seus filmes muito muito fortes. Mas não há mais essa pressão do autor independente, pois os Cahiers foram assim uma época. Quando Renoir era atacado, eles defendiam Renoir. Ao mesmo tempo, Godard é respeitado e reconhecido por todos. Com Straub é diferente, ele não é visto nas mesmas condições. É verdade que a questão dos Cahiers é que há vinte anos lutávamos para defender Oliveira com Francisca, e hoje Vou Para Casa, com Michel Piccoli, é um grande sucesso. Mas foram necessários vinte anos para impor um cineasta e defendê-lo junto à crítica e ao público. O que nos é interessante hoje é encontrar o novo Oliveira ou o novo cineasta que precisa dos Cahiers hoje. É isso que é interessante numa revista, é poder prospectar. O sentido da política dos autores é isso, pegar um primeiro filme... o filme de Jia Zhang-ke, por exemplo, um filme chinês chamado Xiao Wu. Depois ele fez Platform.

RG: Platform passará na Mostra de São Paulo...

CT: Veja pois é excelente. Nós colocamos o primeiro filme dele na capa da revista, e o que é interessante é nos persuadir que dentro de dez anos, será um dos cineastas que vão contar. Podemos nos enganar, claro, mas eu acredito que os Cahiers em seu passado não se enganaram muito nos autores que elegeram.

RG: Há uma mudança nos Cahiers dos anos 80 que é tentar visualizar o cinema e o cinemundo, ou seja, sair da Europa, ver todos os filmes do mundo, os filmes do terceiro mundo, China, Irã, América Latina...

CT: É algo muito importante a ser dito, pois inicialmente os Cahiers foram o cinema hollywoodiano, o neo-realismo italiano, o cinema francês, e depois os autores, ou seja, Dreyer, Bergman, os autores redescobertos. Começou com os novos cinemas nos anos 60, e rapidamente a redação, que era pró-Hollywood – não tanto quanto nos anos 50, mas mesmo assim –, passou a se interessar majoritariamente pelos novos cinemas, Straub, Oshima, Skolimovski, Rocha. E depois, os anos 70, que foram anos militantes. O que mudou nos anos 80 é que nós passamos a acreditar – e tomamos Serge Daney um pouco como um guia naquilo que ele dizia – que é preciso viajar, que há cinema no mundo todo, e é preciso ir onde ele acontece. Ou seja, quando um país como a Índia faz 1100 filmes por ano, é preciso ir ver, pois é impossível que entre 1100 filmes não exista um que seja bom. Quando um país produz 100, 200 filmes, é preciso ver o que se passa. É preciso saber que cinema se faz, um cinema popular, comercial, por que as pessoas gostam desses filmes, por que elas vêem esses filmes. E é verdade que essa curiosidade deve-se muito aos Cahiers dos anos 80 em relação ao cinema asiático, com Assayas indo a Hong Kong e contribuindo para fazer as pessoas se interessar por esse cinema. O Irã logo depois... Mas, de fato, foi importante cassar a hierarquia econômica, digamos, cinema francês-cinema americano. Em Paris, existe a possibilidade de ver todos os filmes, mesmo que com pouca bilheteria, ou em festivais, mas o papel de uma revista é efetivamente o de prospectar em países onde o trabalho não nos chega.

RG: Voltando ao cinema americano, nós da Contracampo agora estamos nos envolvendo numa luta contra um novo cinema americano do mal-estar e de cineastas que "sabem demais" como Paul Thomas Anderson, e não só americanos, como também um filme como Amores Perros... São filmes que não nos interessam, porque nos parece que eles, mesmo que sejam muito talentosos, trabalham com uma gramática de cinema de autor que eles como que vestem...

CT: Sim, é como uma vestimenta...

RG: Não é algo que nos parece que esteja na pele deles... E tentamos falar de nossos verdadeiros autores, Todd Haynes, Wes Anderson... Gostaria de saber como você vê essa nova geração americana de Neil LaBute, Todd Solondz, P.T. Anderson.

CT: Neil LaBute não me agrada, Nurse Betty é um gênero de cinema um pouco cínico e desabusado em relação a todos os códigos e a tudo que possamos apontar. É um filme de cinéfilo cínico, ou seja, supõe-se a cinefilia como algo já conhecido e tendo do que zombar. Eu não gosto muito desse espírito.

RG: Jean-Marc Lalanne usa a palavra "derrisório" para falar desse cinema, num artigo que eu creio ser um dos mais importantes dos Cahiers dos últimos tempos ("Le Titanic n'a pas seulement coulé"), onde ele fala contra um filme que eu gosto muito, Starship Troopers, e a favor de um filme que acho correto, mas que não gosto, que é Titanic

CT: Eu também não..

RG: ...Mas o argumento dele é perfeito.

CT: Sim, em relação ao fim da era cínica e o retorno a um gosto do clássico no cinema. Só que efetivamente eu concordo com você, Titanic não é um grande filme, mas ele apontou no filme uma espécie de retorno à fatura clássica de superprodução, como Ben-Hur, Cleópatra, mas sente-se que não é a mesma coisa. Mas no cinema americano não há muita coisa acontecendo, há Carpenter, há Abel Ferrara...

RG: Sempre defendemos Carpenter. 'R Xmas passou aqui e só nós gostamos...

CT: É um filme magnífico.

RG: Nós fomos os únicos que achamos um grande filme, como com New Rose Hotel, que todos acreditaram que havia acabado dinheiro e Ferrara colocou flashbacks no final para que virasse um longa-metragem. (risos)

CT: Eu não gosto muito de New Rose Hotel, mas acho 'R Xmas realmente formidável, muito bem interpretado, um filme muito bom.

RG: Com todas essas modificações, com as mudanças do cinema, quando um autor muito importante como David Lynch utiliza a televisão para fazer séries – Mulholland Drive foi idealizado como uma série de TV –, como seguir a política dos autores no cinema contemporâneo com todas essas aberturas?

CT: Eu não acho que é a abertura audiovisual que renova o questionamento da política dos autores. O problema da política dos autores é mais grave e mais profundo. É o estatuto de autor hoje, tal como ele é atribuído, pois falta força de exigência. O que faz com que Lynch seja um autor – no sentido em que Fellini, antes – ele tem um universo. Há esses personagens insólitos, característicos, conhecemos de primeira o universo de Lynch. Crê-se que ele é mais autor, por exemplo, que Carpenter. Eu não estou tão certo que ele seja um autor maior que Carpenter, mesmo que Carpenter seja um pouco feio, não seja um realizador tão bom. O que é digno de questão hoje na política dos autores é a pertinência do termo, que se diluiu, que faz com que ela não tenha mais hoje muito sentido, e o que faz com que hoje, até nos Cahiers, sejamos menos religiosos com a política dos autores. Além de que, antes, havia um pouco de má fé ao tentar impor essa noção. Bazin, por exemplo, era contra a política dos autores. Ele acreditava que o importante era a obra e não o culto da personalidade do autor, e ele tinha razão. Porque ele apontou uma consagração midiática do autor como rei que o incomodava. Para ele, o que importava era a obra. E a obra é como a catedral, é algo que é feito por muitos. Mesmo como Renoir, onde um filme é feito por diversas pessoas mas há alguém que direciona, como num barco, e diz o caminho a ser tomado. Todo mundo navega esse barco, mas ele vai numa direção só, não em outra. O autor é aquele que faz mover o barco, mas é talvez o produtor, ou no caso de La Chambre des Officiers (filme francês de François Dupeyron) é o maquiador o autor do filme. Como o termo se desviou um pouco – até nos Cahiers –, por momentos assistimos a momentos em que se gosta muito de Wenders e não de Tim Burton. E momentos em que falamos bem de um filme de Jean-Daniel Pollet mas não de um outro, que não gostamos. A questão do autor é pensada demais em relação à obra e ao autor da obra, quando a questão do autor antes, nos anos 50, era uma idéia do cinema, uma idéia política do cinema. Ou seja, era dizer que num autor há uma maneira de fazer cinema que era própria a esse cineasta. Me parece que a noção de autor hoje diminui, e que hoje autor é aquele que tem uma obra, um estilo, um tom identificável de primeira, mas que faz com que essa maiúscula Autor seja autárquica, fechada no próprio cineasta e não dialoga mais com o cinema. Quando, antes, a política dos autores era uma maneira de política inteira do cinema. Já que a política dos autores não é mais uma política do cinema como tal, há autores que seguem, fazem filmes bons, outros não. Os Cahiers estão um pouco nessa crise, dessa maneira.

RG: A palavra que todos aprenderam foi "autor"...

CT: Algo como uma teoria do autor é um contra-senso, não?

RG: Sim, é como diz Godard, a palavra que contra em "política dos autores" é a política.

CT: É verdade. Uma coisa a se dizer ainda é que não havia questão em declarar Renoir nem Eisenstein como autores. Mas não havia motivo nenhum para declará-los porque todos já estavam de acordo que eram autores. Com Hitchcock e Hawks ninguém estava de acordo. É procurar lá onde ninguém vê nada, é esse o gesto de olhar. Hoje os autores são evidentes. Kiarostami é um autor, é evidente, Oliveira também. O equivalente à política dos autores é o que faz alguém como Skorecki (Luis Skorecki, ex-redator dos Cahiers, que assina a página de filmes do Le Monde), que fala que a política dos autores é procurar bons artesãos dentro do sistema, dos estúdios. Logo, o sistema são as televisões americanas e os autores são aqueles que trabalham nas séries de TV, e aquele que filma Friends ou Sex And The City é melhor que aquele que filma Seinfeld ou um outro. Eu compreendo até aí como um paradoxo, mas se permanecemos fiel ao espírito, é nisso que devemos pesquisar. Quem é o melhor autor de videogames hoje, coisas assim.

RG: Voltando um pouco à filosofia hoje na revista. Vocês tem um redator que fala disso (Thierry Jousse) e um escritor do terreno de história e de filosofia que é Jacques Rancière, que tem uma coluna na revista. Qual você acredita que seja o papel da filosofia e do pensamento na reflexão sobre o cinema hoje?

CT: Bom, eu dou cursos na universidade também, mas creio que nos Cahiers eu tenho vontade de falar do cinema com o cinema, nesse momento ao menos, já era a minha posição pessoal e ela não mudou. Jacques Rancière tem uma filosofia particular, porque ele se formou com Althusser, com o marxismo, e ele tem uma visão estética e política muito demarcada, que lhe é própria, que confirma muito seu grau de análise do cinema. São caminhos analíticos, não são caminhos de prospecção ou de intuição. Ele tem um texto que analisa a idéia de política dos autores através da idéia romântica de obra, do autor. A partir de 1968, não há mais autor, então é o texto, a obra. Ele analisa muito bem como essas coisas se fundem. Outra coisa que foi muito importante nos Cahiers. Inicialmente, os Cahiers não eram muito deleuzianos, só fomos nos influenciar por Deleuze tarde. Porque os Cahiers eram antes de tudo lacanianos. Se há um pensador que marcou os Cahiers, foi Lacan. Um pouco Althusser, mas não por muito tempo, e Lacan por muito tempo. E como Deleuze, junto com Guattari, detestava Lacan, e todo o pensamento deleuziano, o Anti-Édipo era contra a reinterpretação lacaniana da obra de Freud. Logo, os Cahiers não dialogavam com Deleuze, porque o rizomático e todas essas noções deleuzianas iam de encontro ao gosto lacaniano dos Cahiers. Hoje, é na universidade francesa de cinema que o debate em torno de Deleuze é mais vivo, na filosofia também, bastante, vê-se pelos trabalhos dos alunos nos cursos sobre Deleuze, em Estética também, cada vez mais... O curso de Estética hoje é a cadeira mais procurada de filosofia na universidade de cinema.

RG: Uma última pergunta: o livro de Antoine de Baecque sobre os Cahiers (Histoire d'une Revue) termina em 1981. Na sua opinião, quais são as principais mudanças desse período para cá?

CT: No fim do livro, ele já aponta para coisas que já se insinuavam e se confirmaram. Sobretudo pelo que diz respeito à conciliação com o cinema americano, o que faz com que os anos 80 se pareçam muito com os anos 50 da revista. Uma dupla que pautou a revista e que reconhecemos atrasados, Coppola-Scorsese, depois Joe Dante, Carpenter, Cronenberg, depois Burton. A América faz parte integrante da revista. Nós encontramos novamente o espírito dos anos 50 nos anos 80. Outra coisa importante é que a revista passou a se construir num duplo centro de gravidade, como havíamos dito, cinema francês-Hollywood. Agora, há o cinema asiático que desempenha um terceiro papel essencial no pensamento do cinema, que é novo e que não existia à época. A Ásia, em relação às hipóteses de cinema que não víamos em outro lugar, mudou muito a paisagem do cinema. Mas eu não penso que em vinte anos a revista tenha mudado enormemente. Houve modificações sensíveis – o "Journal", o cinema americano, a nova fórmula, e continuamos mudando –, mas não são revoluções tão radicais quanto os Cahiers sofreram no passado. Quando Rivette tornou-se redator-chefe logo depois de Rohmer, com os Cahiers comandados por Filipacchi, colocou-se em questão a política dos autores, Hollywood, diziam que não era aquele cinema que os interessava, que era o cinema moderno, os cinemas novos. Depois, a extrema esquerda, a política. Aqui, eu creio que estamos num pensamento mais homogêneo nos últimos anos. O mundo mudou mais que os Cahiers (risos).

RG: Eu tenho mais uma questão que esqueci de perguntar antes. E os cahiersducinema.com? O que vocês tentam fazer na edição on-line? Me parece que o volume de textos diminuiu nos últimos tempos. Antes havia mais material especialmente feito para o ".com", hoje vocês reutilizam muito os textos da edição em papel.

CT: Nós não queríamos fazer uma edição on-line dos Cahiers impressos, mas uma coisa diferente. Quanto às críticas, fazemos porque são os lançamentos. O material inédito é acima de tudo sobre coisas como televisão, DVD, alguns assuntos originais, entrevistas filmadas, sobre a história do cinema sempre tem alguma coisa também... O site também prolonga debates sobre os filmes, como fizemos no caso de In The Mood For Love, a favor e contra. Mas os redatores são um pouco diferentes dos Cahiers, são mais radicais em suas escolhas. Os Cahiersducinema.com são uma revista de cinema mais no sentido literário do termo, ou seja, eles escrevem sobre cinema, de forma exigente, mais radical. Enquanto nos Cahiers escreve-se também, mas há um lado mais jornalista, há mais enquetes, é uma forma de jornalismo cinematográfico que me parece essencial.

(entrevista realizada por Ruy Gardnier no cinema Odeon, no dia 7 de outubro de 2001)