A Vingança de Mathieu,
de Xavier Beauvois


Selon Mathieu, França, 2000

Existem dois inteligentíssimos golpes de roteiro em A Vingança de Mathieu que o tornam um filme acima da média. A primeira hora toda transcorre com uma sensação de estarmos assistindo mais um filme muitíssimo bem filmado sobre a questão do emprego (ou da falta dele) no mundo moderno, sobre a injustiça das grandes empresas e suas estatísticas (tantos mil desempregados, etc) contra a tragédia da rotina de uma família. É um belo filme, mas quando irmãos começam a brigar quanto a ações a serem tomadas, vem uma certa sensação de que estamos por ver Eles não usam Blacktie capítulo enésimo (e claro que o filme de Leon Hirszman não é o primeiro do tema, talvez apenas o mais facilmente identificável por nós).

É aí que Beauvois quebra completamente a expectativa: ao invés do tradicionalíssimo enfoque "político" (como se a palavra pudesse significar apenas uma coisa, mas em cinema talvez signifique mesmo), ele parte para uma radicalização da ação pessoal. O filho revoltado com a morte do pai recém-demitido passa a seduzir a esposa do patrão. E mais: não satisfeito em usar deste inesperado caminho narrativo, o diretor filma estes encontros não apenas como um "artifício" de fim político, mas sim como a filmagem de um filme de "romance". Pegos de surpresa, começamos a nos relacionar com este novo "gênero", e começamos mais uma vez a remeter a tantos filmes (vêm a mente A Primeira Noite de um Homem ou Uma Relação Pornográfica), e passamos a esperar um de dois desfechos: ou ele fazendo aquela mulher se apaixonar, consumando sua vingança em cima dela; ou ele mesmo se apaixonando e colocando amor contra vingança na sua balança de consciência.

Pois vem aí o segundo golpe de Beauvois: o desfecho não caminha para nenhum dos dois lados, e voltamos a um enfoque eminentemente político e ao mesmo tempo familiar. Enfoque este que os tempos atuais refletem de forma muito clara: num jogo de retaliação, é muito mais fácil retaliar quando se detém o poder. E cabe aos que não o possuem se unir, pois afinal é a única coisa com que podem contar. Seja de que forma for, nada pode ser mais atual. E mostra como a micropolítica e a macropolítica estão sempre apenas a um dedo de distância.

Talvez o leitor mais assíduo possa estranhar: "Ué, mas ele está elogiando um filme por suas viradas de roteiro, justamente ele que sempre reclama de filmes baseados exclusivamente nisso??" A palavra-chave de fato é esta: exclusivamente. O que Beauvois sabe é que num filme de cunho eminentemente narrativo e realista como o dele, a condução narrativa precisa ter algum diferencial para sobreviver na selva dos milhares de filmes já vistos por críticos e público. Precisa jogar com as expectativas e surpresas destes. No entanto, só deve fazer isso na medida em que seus personagens, seu conteúdo, seu estilo, o peçam. E não apenas como arbitrários jogos de roteiro. No fim, o filme de Beauvois é isso: um filme de roteiro. Mas, um filme de roteiro não exclui uma direção competente (a ver a cena da morte do pai, brilhante), cuidados estéticos, nem muito menos coerência entre objetivos e meios.

Eduardo Valente