Minha Viagem à Itália,
de Martin Scorsese


Il mio viaggio in Italia, EUA, 2001

Há seis anos, por conta da comemoração em torno do centenário do cinema, cineastas de várias partes do mundo foram convidados pela rede de televisão BBC para realizarem um documentário sobre a cinematografia de seus respectivos países. Assim, nomes como Nelson Pereira dos Santos, Stephen Frears, Stanley Kwan e Jean-Luc Godard puderam apresentar suas visões, reflexões, idéias e questionamentos mais variados sobre filmes, gêneros e história de cinemas nacionais de um modo geral. Nenhum, no entanto, foi recebido de maneira mais efusiva pelo público como A Personal Journey Through American Movies, de Martin Scorsese, uma série de aproximadamente seis horas veiculada no Brasil pela extinta TV Manchete e o único dos filmes (junto com O Cinema de Lágrimas da América Latina, de Nelson Pereira, por razões evidentes) disponível em vídeo por aqui.

É natural que o documentário que abordasse o cinema norte-americano realizado por um cineasta como Scorsese, cujo nome desponta entre todos os participantes da série como o mais fácil de reconhecer, autor de filmes de grande orçamento distribuídos em toda parte do mundo com sucesso, fosse o mais celebrado. Mas não foi nada óbvio o que Scorsese fez com a idéia original. Longe de se refugiar na historiografia burocrática da imensa maioria dos livros sobre o tema ou apresentar uma visão rasa e imparcial, Scorsese resgatou sua própria formação de cinéfilo de maneira apaixonada para servir de roteiro a uma viagem íntima e intensa. Somando-se a isto um rigor crítico inigualado por boa parte dos pensadores de cinema contemporâneos, repleto de idéias absolutamente originais e irrepreensivelmente bem apresentadas, o diretor deu cria a uma das obras mais importantes realizadas em qualquer mídia sobre o cinema norte-americano.

Dado o sucesso da empreitada, Scorsese passa a preparar um outro documentário, desta vez focalizando um outro lado de sua formação como cinéfilo, cineasta e ser humano: o cinema da Itália. Ele não o fará sozinho, naturalmente, e para essa tarefa ele contará com a ajuda de ninguém menos que Kent Jones (possivelmente a maior voz de uma nova geração de críticos norte-americanos) e Suso Cechi D'Amico (uma das pedras de base do moderno cinema italiano, colaborador de Rosselini e um dos ideólogos do neo-realismo) na elaboração do roteiro e de sua habitual companheira Thelma Schoonmaker na montagem dos extensos trechos escolhidos entre os filmes italianos.

Seu objetivo em Minha Viagem à Itália difere em pelo menos um aspecto fundamental de seu Personal Journey: seja por desencargo de consciência ou por uma posição pessoal e política (ou por uma mistura de ambos), seu elogio do cinema italiano é, por extensão, o elogio do cinema estrangeiro (não-norteamericano). Apresentar suas experiências pessoais com o cinema americano foi parte de uma estratégia para contaminar novas gerações de espectadores com o prazer da descoberta de uma paixão, de formar uma cinefilia atenta a descobrir sem medo formas novas e inusitadas. Mas era necessário apontar como ele obteve os recursos para pensar desta forma extravagante um cinema tão avesso a abordagens extemporâneas (uma tensão que não se resolve em Personal Journey e que é o elemento mais complexo e charmoso da experiência). E logo no início deste novo projeto é a descoberta do cinema estrangeiro, através do italiano, que salta como elemento privilegiado de sua visão.

Essa descoberta se dá por meio de exibições semanais de filmes italianos na televisão durante a infância do diretor. Era comum, segundo ele, assistir num mesmo dia à sessão matutina de um Roy Rogers no cinema e à exibição televisiva de Paisà, de Rosselini. Épicos como Cabiria são o contraponto para filmes de DeMille, e trazem consigo uma carga histórica que não escapa aos olhos curiosos de uma criança criada em um bairro de imigrantes italianos que se reuniam em peso para assistir a esses filmes na TV. O envolvimento do imigrante à sua terra natal é expresso no forte impacto emocional com que os filmes neo-realistas são recebidos pelas pessoas à sua volta.

À medida em que os filmes se relacionam, através de uma montagem de trechos escolhidos, fica claro o foco privilegiado da narrativa: Roberto Rosselini. De seus primeiros documentários sobre o mundo submarino, passando por Roma, Cidade Aberta, Paisá, Alemanha Ano Zero, até Francisco Arauto de Deus, Europa 51 e Viagem à Itália, Rosselini passa a ser o norte, o centro do documentário e por extensão do cinema italiano, segundo Scorsese. Os filmes são expostos em longos comentários que analisam cada detalhe, cada imagem, cada figura, cada cena e apresentam informações biográficas.

Sem a intenção de ser completo, o documentário escolhe um punhado de realizadores cujas obras serão esmiuçadas da mesma maneira pelo diretor: DeSica, Visconti, Antonioni e Fellini. Não há uma exposição cronológica precisa: o filme faz desvios, toma atalhos, volta e avança no tempo ao sabor de uma aproximação que pode tanto ser temática, estilística ou imaginária. Enfim, pessoal.

As quatro horas exibidas no Festival do Rio correspondem à íntegra das duas primeiras partes do projeto, exibidas na abertura de Cannes último. Elas se encerram com o Oito e Meio de Fellini, o filme favorito de Scorsese, realizado em 1962. Ao fim da sessão, ele aparece para informar que as próximas partes estão atualmente sendo realizadas e serão dedicadas a outros cineastas como Bava, Pasolini, Bertolucci, Rosi, Dino Risi, Lattuada, Monicelli, Scola, Argento e muitos mais.

Esta urgência necessária de valorizar o estrangeiro, situando sempre o contexto histórico e apontando sistematicamente para a análise mais abrangente possível, é ainda reforçada para o jovem espectador, para o qual se lança textualmente a tarefa de tentar compreender à sua maneira as cinematografias do Irã, da China ou de Taiwan.

Terminada à aula, vamos ao dever de casa. Com todo prazer.

Fernando Verissimo