'R Xmas,
de Abel Ferrara


'R Xmas, EUA, 2001

Uma apresentação de final de ano de um auto de natal na escola. Pais orgulhosos se amontoam para assistir seus filhos. Uma câmera doméstica registra a menina que, em nome de todos seus colegas, transmite uma mensagem de paz. Ela, em seguida, sai com seus pais para andar de carruagem por Nova York e passear por um shopping. Enquanto pede para o Papai Noel uma boneca de natal, seu pai tenta subornar, em vão, uma funcionária de uma grande loja de brinquedos para lhe vender a última boneca, já vendida.

Uma família dentro dos padrões de vida americana. Uma família estrangeira, da República Dominicana, totalmente inserida e bem aceita na sociedade no qual vivem. Partilham dos hábitos e dos símbolos de consumo, sua filha estuda em uma escola particular, seu carro é um BMW novinho. Uma família normal, uma família extremamente unida. Os pais, jovens, se amam e não tem conflitos e trabalham juntos em uma empresa familiar:

O tráfico de drogas. O conflito central do filme é o seqüestro do pai em plena véspera de Natal. Policiais corruptos querem muito dinheiro em vinte minutos e mais: que o patriarca deixe de vender drogas, que deixe de fazer mal a jovens consumidores.

A serenidade do pai contrasta com a violência a qual ele é submetido. O agente da violência, no filme, é a polícia corrupta. Ela o espanca enquanto espera pelo resgate.

Sua mulher tem que articular sozinha o resgate. Em um momento em que todos que poderiam ajudá-la estão fora da cidade. Como ela consegue não importa, Abel Ferrara faz um filme sobre traficantes que vai muito além das representações comuns deste tipo no cinema atual. Nada que nos lembre o traficante violento e solitário de filmes como Pusher, que está no Festival, ou como outros de já clássicos do gênero como Pulp Fiction e Transppoting. Esse traficante é capaz de formar uma família equilibrada e inserida na sociedade que ele escolheu para viver. Nada de pessoas alcoólatras e drogadas nada de pessoas explosivas, fora do controle. A droga é quase como um trabalho qualquer, uma forma de ganhar um dinheiro para viver. Pessoas que não se vêem trabalhando em outra coisa, sem formação universitária. Imigrantes que, talvez, jamais teriam este padrão de vida se trabalhassem com algo legal nos EUA.

Sua mulher faz de tudo para ter seu marido de volta. Para que, sobretudo, sua filha não descubra o que seu pai faz, o seu envolvimento com algo condenado moral e legalmente.

Apesar do envolvimento com drogas, há uma tentativa, por parte dos pais da menina, de se cultivar determinados valores morais. Valores religiosos de divisão de riqueza (símbolos religiosos estão constantemente presentes na cenário da casa). O casal é responsável por ajudar inúmeras famílias de seu país que passam dificuldades nos EUA. Pagam formação universitária, ajudam nas despesas cotidianas. Bem feitores homenageados pela comunidade da República Dominicana.

Ferrara nos traz uma visão um pouco mais humanizada da questão do tráfico de drogas. É claro que não podemos esquecer da violência que envolve a questão. Mas em um momento de Natal ela pode ser deixada para depois. Problemas podem ser esquecidos para que a menina ganhe sua boneca, para que a família tenha momentos de alegria, de despreocupação. E esse filme é, sobretudo, sobre um momento de celebração religioso, um momento de intervalo do cotidiano.

Com certeza 'R Xmas é um filme que ganha muita força se comparado com a produção atual de cinema que tematiza o tráfico de drogas. Consegue fugir ao mesmo tempo das normas de violência embutidas neste gênero e de tentativas de uma visão totalizante da questão (a exemplo de Trafic). Um olhar sensível que não relega à droga um espaço necessariamente de submundo nem de gueto. Ela está muito mais perto de todos. Ela está na classe média/alta, não só no consumo. A droga como uma das tentativas de se fazer parte de algo maior que o indivíduo, de se inserir nas regras do jogo. Ou você acha que um traficante mora no morro?

Marina Meliande