Plataforma,
de Jia Zhang-ke
Zhan Tai, China/França/Japão,
2000
Enquanto uma sonora
sinfonia de portas de saída povoava a sala de cinema, alguma coisa
de muito importante acontecia na tela, e que certamente fazia ressoar
com mais força toda a dimensão da intriga e da forma de
Plataforma. Pois trata-se de um filme sobre a falência da
arte, sobre a incapacidade do sonho em manter-se frente aos imperativos
da vida econômica, da "realidade" pairando acima de toda
possibilidade de imaginação, de vida diferenciada. Plataforma
é um canto fúnebre, um lamento diante da dificuldade de
seus personagens em conseguir viver de suas artes. Um filme que, esse
sim, teria todo o direito de chamar-se "réquiem para um sonho",
pois. A romaria dos espectadores em direção à saída
da sala acrescenta, ironicamente, a extrema crueldade (do destino? do
sistema social? o filme sabiamente insiste em não dizer) que vemos
na tela: soa como a negação da assistência em querer
acompanhar passo a passo todos os momentos e interstícios da vida
de cada um dos personagens, negar um profundo respeito que o filme dedica
ao tempo de seus protagonistas, e um ritmo necessariamente lento para
acompanhar a passagem de meses e anos onde a única regra geral
é a incerteza quanto ao futuro e a iminência do fracasso.
A primeira cena nos
entrega uma apresentação do grupo cultural da cidade de
Fenyang. Segundo a linha geral do Partido Comunista Chinês a partir
da Revolução Cultural, os espetáculos devem ter com
função reforçar a crença política dos
cidadãos chineses. Logo, qualquer peça montada por esse
jovem grupo deve apresentar características políticas. Aquilo
que vemos na tela é a representação da vida do Camarada
Mao, mas um contato inicial com os personagens já nos mostra o
quão desolcada a arte deles está de suas vidas: são
adolescentes que querem falar sobre liberdade, que querem acompanhar
mesmo com dificuldades a música pop feita nas grandes cidades,
que desejam eles mesmos serem artistas pop. Se esse desejo é cassado
pelo estado, ele o é sem melodrama, sem externação
visual ou falada, apenas pela constatação da situação
o que deixa qualquer filme de Zhang Yimou ou Chen Kaige sobre a
política comunista chinesa no chinelo. Plataforma somente
acompanha a vida de quatro jovens, sem precisar em algum instante remeter
ou reduzir a intriga à dimensão política. Nesse sentido,
aproxima-se muito da dimensão propriamente de memória coletiva
que existe no cinema de Hou Hsiao-hsien, especialmente de A Cidade
do Desencanto.
Mesmo que vários
filmes recentes tenham um elo muito forte com a política, sobretudo
depois que ela foi recolocada em questão a partir dos eventos de
11 de setembro (Promessas, Candahar) não resta a
menor dúvida em afirmar que Plataforma é o filme
contemporâneo que mais leva a História e a política
a sério, que é o único que tem o apego e o tempo
necessários para evoluir e nos fazer perceber a vida e as transformações
da China nos anos 80. Com as mudanças na política operadas
por Deng Xiaoping, uma liberalização e uma desestatização
passam a ser lentamente realizadas. Com o grupo jovem de Fenyang também:
inicialmente subvencionados pelo Estado em sua tarefa "cívica"
(na verdade propagandística) de transmitir a palavra do Partido,
com o novo modelo eles devem se garantir por si mesmos, ser um grupo privatizado.
Em compensação, eles agora poderão tocar rock e pop,
dançar as músicas que gostam sem risco de correr intervenção
do Estado. O tecido político em Plataforma só aparece
enquanto dentro das vidas dos personagens, seja naquilo que ele
afeta diretamente suas existências seja pelo que aparece nos auto-falantes
e na rádio.
Inicialmente, temos
quatro amigos: Cui Mingliang, jovem de óculos e logo depois líder
da trupe; Yin Ruijuan, a menina que sonha em ser dançarina e por
quem Mingliang se apaixona; Chang Jun, o melhor amigo de Mingliang, bonitão,
com cabelo ocidentalizado e calças boca-de-sino que já inauguram
o desejo de modernidade de uma juventude chinesa cansada da ditadura cultural
impingida pelo Partido; e Zhang Pong, a namorada de Chang Jun. Plataforma
será o acompanhamento da triste debandada de cada um desses personagens
do sonho artístico, assim como a passagem de um país transformado
de uma utopia revolucionária que acaba se demonstrando mais uma
ditadura à fria lógica do capitalismo, onde a ditadura não
é propriamente política, mas se impõe de forma econômica
e com a dolorosa ideologia de que "não poderia ser de outra
forma". Não é mais um filme que dança no cadáver
do comunismo dos quais o mais vagabundo é o Nenhum a
Menos de Zhang Yimou , e sim uma obra que deixa perceber os
diferentes graus de absurdo existentes em ambos os sistemas.
A primeira metade
do filme baseia-se na construção dos personagens, nas relações
dos dois casais (o amor recusado de Ruijuan, o aborto de Zhang Pong),
e na construção do ambiente da cidade de Fenyang, um triste
vilarejo no meio do nada, com uma geografia que parece expressar o tom
geral de seus habitantes (por conseguinte, um sentimento existencial da
China inteira): montanhas de cor bege, céus cinzentos... A encenação
de Jia Zhang-ke é distante, preferencialmente de planos longos
e fluidos, sempre muito bem construídos (a cena em que Mingliang
declara seu amor, onde uma parede ocupa toda a metade esquerda da tela
enquanto os dois meninos andam para dentro e fora de nosso campo de visão,
um após o outro, é surpreendentemente bonita). A segunda
parte de Plataforma é composta de viagens: tendo que ganhar
seu sustento unicamente do dinheiro arrecadado com os espetáculos,
o grupo passa a viajar para as cidades vizinhas, e vai lentamente perdendo
seus membros, e ganhando alguns outros. À medida que passa o filme,
a trupe passa a ser formada quase de párias, e todas as mudanças
realizadas (grupo pop, estética punk, dançarinas uniformizadas)
parecem tentativas patéticas de chamar a atenção,
advindas da necessidade de permanecerem vivos enquanto grupo.
Essa parte tem ao
menos dois momentos de uma força incrível: num, a dançarina
Ruijuan tornada policial está no hall de uma chefatura e coloca
seu microsystem no máximo e, de uniforme, dança uma música
que gostaria de estar dançando em outro lugar, com outra vestimenta.
O outro momento é a viagem à cidade de alguns parentes de
Mingliang. Ao se encontrar com sua família, descobre que seu infortúnio
como artista repete-se também na vida daquela pequena cidade: com
a mudança do regime, o trabalho na mina de carvão, única
atividade econômica da região, passa a ser regido pela lógica
de lucro do novo sistema, mais draconiana ainda do que a comunista (o
começo do contrato de emprego diz: "Vida e morte são
coisas do destino", onde a empresa lava as mãos para quaisquer
acidentes ocorridos em trabalho). Um primo seu, com a sua mesma idade,
terá que adequar-se a esse regime, e na despedida entrega a Mingliang
algum dinheiro para que sua irmã (que mora em Fenyang) jamais precise
voltar para sua aldeia nativa.
Mas a grande sabedoria
de Jia Zhang-ke (jovem artista de quem esperamos que passe também
no Brasil seu primeiro filme, Xiao Wu) reside no carinho e no tempo
que dedica a seus personagens para que eles existam, na maneira
como filma seus desejos e o espaço onde vivem. Plataforma herda
seu nome de uma canção homônima, muito popular nos
anos 80, um rock que expressa em sua letra o caráter sem muita
esperança de toda uma geração. Com muito carinho
e no entanto demonstrando toda a crueldade da situação,
essa música é tocada no filme quando o caminhão que
leva a trupe está enguiçado no meio de uma paisagem desértica.
Ao longe, ouve-se um barulho: é um trem, algo que em Fenyang nunca
existiu. Eles correm o mais rápido possível para vê-lo
mais de perto, mas só conseguem chegar quando ele já passou.
Triste e ao mesmo tempo vigoroso, Plataforma é um sopro
de juventude e força, de devoção ao mundo (mesmo
que o mundo não retribua) e de confiança nos poderes instauradores
de mundo do cinema.
Ruy Gardnier
|
|