Millenium Mambo,
de Hou Hsiao-hsien


Millenium Mambo, Taiwan/Japão, 2001

Em Vivendo no Limite, de Martin Scorsese, há um lugar fora do tempo e do espaço, um lugar destinado a se livrar das restrições e do estresse imposto pela vivência cotidiana. Esse lugar é o "Oasis", o apartamento de um traficante, uma espécie de "lounge", de "chill out", onde as pessoas vão para se entorpecer e se deixar levar por seus próprios pensamentos. Sedutor e perigoso, trazendo uma deliciosa sensação de perda de sentidos, esse apartamento de paredes vermelhas, se fosse um filme, seria Millenium Mambo. Pois constantemente o que mais aflora no filme é o sentimento de estar perdido em meio às (belíssimas) imagens que aparecem diante da tela, de estar absurdado tanto pelo grau de virtuosismo técnico e narrativo burilado anos a fio por Hou quanto pela própria história, quase abstrata, que jamais nos deixa saber exatamente quanto tempo se passa entre uma cena e outra, uma seqüência e outra.

Claro, o cinema de Hou Hsiao-hsien nesse filme torna-se o de um mestre e não o de um inovador. Imaginável para quem havia visto os dois anteriores, Flores de Xangai e Adeus ao Sul, obras-primas que testavam todos os limites e fronteiras do cinema. Em Millenium Mambo não há retrocesso, mas assimilação. A mesma mestria antes demonstrada com a luz natural (Adeus ao Sul) ou com a ambientação (Flores de Xangai) aparece em Millenium Mambo com o foco. Não só a mestria como também os temas: a droga, a violência que aparece surgida do nada, a câmera que realiza movimentos mínimos, hipnóticos, que no entanto mudam a cena inteira, o procedimento padrão do plano seqüência – é entretanto seu filme mais decupado em anos.

Mas como sempre no cinema de Hou, a mola mestra de seu filme é o tom. Em entrevistas, afirma que achando o tom de seu projeto, acha o filme inteiro. E o tom de Millenium Mambo é justamente o adequado a seu projeto: filmar as andanças de uma jovem freqüentadora de boates techno e sua difícil vida amorosa com Hao-hao, traficante meia-boca e DJ de música eletrônica. Só que, ao contrário dos filmes em que o techno é apenas mais um ritual, em Millenium Mambo Hou aceita todos seus pressupostos: uma entrega ao hedonismo, estado de transe, repetição contínua (os temas musicais do filme, muito bonitos, repetem-se à exaustão), delírios de cores, fumaça, sem entretanto deixar escapar uma leve sensação de vazio. Vários filmes já tentaram se afrontar ao techno; Millenium Mambo é o único que consegue expressá-lo em termos de cinema.

É um cinema dos afetos, um cinema profundamente espinozista, que não faz a separação por gêneros ou o personagem por suas características psicológicas, mas antes de tudo por relações de velocidades, contigüidades, amor e fobia, capacidade de afetar e ser afetado. Vicky trepa, Vicky dança, Vicky fuma (haxixe?), Vicky está triste, Vicky vai para o Japão... antes isso do que o trauma psicológico infantil tão comum ao atual cinema americano, tão moralizante, tão burro... Hou Hsiao-hsien dá a seus personagens essa liberdade de se movimentar sem precisar de um passado.

A primeira imagem que vemos, o sempre presente plano de abertura de Hou que já dá todo o tom do filme, mostra Vicky correndo em câmera lenta por um corredor iluminado e aparentemente sem fim. A voz adocicada de uma narradora nos conta um pouco das motivações dela: estar infeliz com o namorado possessivo, querer abandoná-lo assim que conseguir algum dinheiro... Ela é uma menina da noite de Taipei, uma Miss Taipei Disco Dancer. O techno não cumpre então uma função ilustrativa de sua vida; antes a constitui, dá o ritmo de sua vida, e forma e conteúdo do filme sempre fazem um só como poucos já souberam fazer no cinema.

Aproveitando-se do delírio musical, Hou sabe também fazer seu filme mais visualmente hedonista, mais virtuoso, tocando no território de Wong Kar-wai e vencendo na casa do inimigo. Um plano absurdo, absolutamente inesperado, iniciado com um reflexo de Vicky e Hao-hao fazendo sexo, faz um travelling para cima e termina com uma luz pisca-pisca amarela no centro da tela, sem nenhum motivo aparente. O sexo é uma noite techno com iluminação e espelhos de pista de dança, mas o cinema de Hou Hsiao-hsien nunca foi tão abstrato, nunca apoiado tanto em seu projeto de fazer da história uma simples linha reta necessária ao real objetivo de seus filmes, captar os momentos, os climas, os interstícios, os "entre" de cada relação. O foco do filme está sempre "entre" uma coisa e outra, como Vicky está entre Hao-hao e Kao, entre luminosidade construída (primeira metade do filme) e luz natural (segunda metade), entre silêncio (do quarto de Kao) e música (do resto inteiro do filme). Hou Hsiao-hsien permanece fiel a seu espírito de cinema como uma experiência, uma oferenda que ele dá ao espectador, uma dimensão um pouco drug dealer do "Oasis" de Scorsese: ele dá um pouco do melhor entorpecente para o bem de seu cliente, que pode se entorpecer ou dormir. Quem dormiu, boiou. Quem se entorpeceu, soube do que o cinema é capaz. Millenium Mambo não traz as inovações dos últimos. Mas, diante de um regalo como esse, a pergunta surge, necessária: quem se importa?

Ruy Gardnier