Manelão, o Caçador de Orelhas

Brasil, 1982

Em todos os filmes de Candeias existe um incômodo causado pela forma como ele filma seus personagens, de igual para igual. Ele não pode usar uma bela e bem cuidada fotografia para falar dos tipos absolutamente marginais (no sentido que ele mesmo dá para a palavra no seu primeiro filme: à margem), ele não pode ter o que convencionou-se chamar de bom gosto para lidar com estas realidades. Em cada um de seus filmes, isso se corporifica de uma forma diferente. Candeias possui uma obra incrivelmente depressiva, porque nela há o peso de um ciclo eterno de opressão, exclusão, desesperança.

Isso dito, talvez Manelão seja seu filme mais radical, o que se tratando de sua obra é dizer muito. Se Aopção e Caçada Sangrenta abstraem a narrativa ao máximo, se A freira e a tortura joga diretamente com a tolerância do espectador, se A Herança radicaliza a linguagem, em Manelão Candeias é ainda mais sutil. Porque, de fato, pode-se dizer que o filme, ao contrário de tantos outros dele, possui começo, meio e fim, e segue a trajetória de um personagem. Também pode-se dizer que as cenas mais duras são poucas. E, mesmo assim, o filme possui uma profunda capacidade de incomodar, que vem daquela sensação descrita acima: a desesperança. Em Manelão impera o silêncio. E o som do carro de boi, que como em Vidas secas, adquire um tom épico de um lamento universal por aquelas subvivências. Ao invés da ação, a observação. Os personagens não transitam, eles vagueiam perdidos.

A construção é a de um "western" sem heróis nem bandidos, ou seja, uma impossibilidade. As mortes nada significam, o caminho não leva a salvação de ninguém. De uma certa forma, trata-se de um Imperdoáveis de terceiro mundo, no qual ao vazio da matança é somado o componente social. Manelão é o mais fiel filme não adaptado de Guimarães Rosa. Embora este fosse um intelectual de classe alta, bem diferente de Candeias, com sua pesquisa de linguagem ele conseguia passar o imaginário do homem duro do interior, com o foco narrativo subjetivo, como ninguém jamais conseguiu. Candeias parece falar com sua câmera o mesmo idioma de Rosa. Cada plano seu, cada voz em off, cada cantiga, cada cena duríssima, é um mergulho no interior. Candeias não filma em locações simplesmente, ele parece ser a locação. A paisagem vira o personagem e vice versa. Com isso, ele prova que ser "roseano" não é reproduzir o caudaloso palavrório dos livros dele, pois estes eram um recurso antes de mais nada literário, para criar o mundo. O cineastas que tenha o dom de filmar sabe criar este mundo com um plano, então dispensa as palavras, e é isso que Candeias consegue fazer. Cada plano seu em Manelão é um parágrafo de Rosa.

Para construir esta atmosfera, Candeias esconde por trás de uma aparente preguiça estética (os seus cortes no meio de zoom ins, os enquadramentos mal resolvidos, o som mal dublado) um profundo controle do mais difícil dos aspectos estéticos do cinema: a passagem de uma sensação. Em Manelão impera esta sensação de imobilidade e desesperança no trajeto de um homem que se torna um matador profissional apenas para poder curar-se de uma gonorréia. Segundo suas palavras: "é a minha vara de mijo ou a orelha de não sei quem". Nesta opção há uma profunda culpa católica, mas também o peso de uma inevitabilidade. Seguimos os caminhos deste personagem sem que haja qualquer sensação de prazer em nada, sem que haja qualquer indício de possível melhora. Ele apenas mergulha num ciclo, numa vida. O espectador não tem a possibilidade da empatia com o personagem, não há a cumplicidade de quem segue uma odisséia, mas sim a de quem testemunha uma banalidade que de tão grotesca beira o mítico.

As únicas cenas que intuem alguma alegria deste personagem são as de sexo. Como sempre em Candeias, o homem oprimido retira do sexo a única satisfação possível, mesmo que seja através da opressão do outro. Sexo em Candeias nada tem de prazeroso, de bonito, ou de completude. É de fato uma necessidade física, que adquire um sentido quase espiritual, mas de uma forma muito direta. Tanto assim que a libido de Manelão é acordada pelo ato da excreção por parte de uma mulher, além da sua própria. Candeias liga indelevelmente as necessidades fisiológicas. Que, no caso de Manelão, serão resolvidas com vacas, éguas, cadelas, putas, todas tratadas da mesma forma. Todas as cenas de sexo são completamente anti-eróticas. Sexo não é fetiche, é um fato.

Como se vê, não é um filme para se deliciar. É um filme que desce pela garganta machucando, que não tem um plano sequer fácil de digerir. Lá pela metade do filme há um plano completamente desimportante na narrativa que também pontua a visão complexa de Candeias deste círuclo vicioso social, suas origens e impossibilidade de futuro. Nele, Manelão aparece agachado sobre o solo, cavucando-o e ele pensa: "Os crioulos dos bandeirantes podiam ter esquecido alguma pedra..." Ou seja, ao povo resta isso: torcer pelas migalhas que possa ter sido deixadas para trás pelos calhordas de nossa História ou adentrar resignadamente no ciclo da vida sem sonho. No final, já tendo quase engasgado o espectador, Candeias fecha seu filme com um toque sutil e ao mesmo tempo tão direto de comentário social: à população chocada com o assassinato do fazendeiro local, o violeiro responde: "se não tivesse doutor, não tinha matador. Morreu, tá bem morrido." Assim, ele consegue dar uma ressonância ainda maior ao que já era uma porrada firme. Talvez Manelão seja seu filme menos diretamente sociológico, mas talvez seja o que bata mais fundo, justamente por isso.

Eduardo Valente