Caminho para Kandahar,
de Mohsen Makhmalbaf


Safar é Gandehar, Irã, 2001

Tudo bem. Aí o crítico senta no cinema e vai assistir O Caminho para Kandahar. O filme vai denunciar o estado de miséria econômica, a situação da mulher e o simples estado precário da vida no Afeganistão. Tudo isso tendo sido lançado em maio, portanto bem antes do que aconteceu e vem acontecendo no mundo e, principalmente, no Afeganistão, desde setembro. Tudo bem. Mas como pode ser o crítico rigoroso hoje com o mundo superando muito a ficção? Como pode ele tratar de forma blasé um filme que adiantou como mundial uma questão que logo mostraria ser? Um cineasta cujo radar apontou antes para algo que logo todos estaríamos vendo? Difícil, muito difícil. Mas temos que tentar conseguir escapar às possíveis prisões que a realidade nos imponha. Temos que escapar e ver que: Caminho para Kandahar está longe de ser um grande filme. Talvez as circunstâncias do mundo o tornem urgente, premonitório, impossível de ignorar. Ok. Mas não o tornam bom só por isso.

E por quê não seria ele um bom filme? Primeiro porque é um filme confuso, não confuso na sua história, mas acima de tudo confuso no que quer mostrar, no que quer dizer, em como quer fazê-lo. Muitos atribuem esta confusão à sua realização, filmado clandestinamente no Afeganistão. Não importa. Quem consegue encenar o tipo de sequências que vemos aqui não tinha tantos impedimentos assim, como qualquer um que já esteve numa filmagem pode atestar. Isso não serve como desculpas para uma aparente preguiça narrativa que domina o filme. O filme vem aos borbotões, situações incompletas, linhas narrativas fugidias. Premissas nem sempre honestas. As condições de filmagem podem justificar sim falhas de qualidade de imagem e som que o filme tem. Sem problemas. Não pode justificar uma condução no mínimo contestável.

O filme opta por uma narração em inglês feita pela atriz e "musa inspiradora" do projeto, o que se justifica pelo fato de morar no Canadá. Não funciona. E não porque o inglês seja uma língua internacional, que empreste ao filme uma cara não autêntica, nada disso. Não funciona porque a narração é ruim, porque o que é dito tenta direcionar o espectador mais do que o que o filme possa mostrar. Não funciona porque é óbvia, repetitiva e mal escrita. Depois, o filme arranja um personagem-guia, um quase guru espiritual, que é um americano vivendo disfarçado no Afeganistão. Não funciona. Seu texto é péssimo, mais uma vez descuidado, manipulador. Não se crê por um segundo no que ele diz. Estes são problemas graves porque são os nossos dois guias narrativos do filme. Se o que eles dizem não funciona, o filme fica capenga. Apelar para eles para nos "mediar" o que vemos é, no mínimo, saída facil.

No geral, o filme parece ter uma coleira no pescoço que é esta sua "mensagem". Ela é maior do que o filme. Makhmalbaf filma "contratado" por esta mensagem, trata-se de um filme de encomenda, uma denúncia. Ele está a serviço de um discurso. Nada de errado nisso, a ver pelo filme de Kiarostami novo, um filme de encomenda clássico. O problema está na admissão disso. Kiarostami não nega a sua encomenda, enquanto Makhmalbaf tenta escamotear um discurso pronto como "a" realidade. Não cola. Se a realidade é mesmo mais importante que o filme (e este é o argumento para tornar o filme incontestável), então ela devia ser maior do que esta tentativa de acomodá-la a partir de uma denúncia. Como realidade, não cola. Inúmeras cenas parecem pedir contestação. Será que o "Afeganistão é assim", ou nos quer fazer crer nisso o olhar destas duas pessoas? Será que é tudo tão simples como parece, com a miséria e a ignorância levando à tragédia? É claro que todos estes elementos estão lá na realidade, mas não necessariamente dispostos como é a "realidade" de Makhmalbaf. Principalmente porque não se trata de realidade, trata-se de ficção. Então devemos sim questionar opções e encenações.

Como questionável é a queda de pernas do céu, porque toda a encenação daquela sequência é absurda, no pior sentido. Aqueles aleijados andando para um lado e para o outro no fundo do quadro são inadmissíveis. Até a imagem da queda, que parece estudadíssima para causar sensação, para ser considerada síntese de uma tragédia. Não é, é a estilização da mesma. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Muito mais bela e trágica, para ficarmos no próprio filme, é a imagem da peregrinação das mulheres de burcas, tapadas dos pés a cabeça, pelo deserto. Muito mais forte, muito mais sintética, muito mais simbólica justamente por não tentar desesperadamente sê-lo, como a outra. Quinze aleijados andando de um lado para o outro esperando pernas caírem do céu não "são o Afeganistão", como quer fazer crer o diretor.

Diz a lenda que o filme foi ser exibido para George Bush entender o Afeganistão. Pois é perfeito, porque é para isso mesmo que ele parece ter sido feito. Para ser assistido por alguém tão simplista quanto Bush, que ia entender tudo: o Afeganistão de Makhmalbaf é uma versão No Limite de um trem dos horrores, onde cada monstro é pior que o anterior, onde o único esforço civilizatório fala inglês, é americano, canadense ou inglês. Precisamos salvar estas pessoas, não importa como, e apesar delas mesmas. Precisamos salvá-las delas. É preciso jogar mais pernas (ou comida), é preciso exterminar a ignorância talebã. Com pernas e sem talebã, vai ficar tudo bem, para as mulheres, os aleijões, os imigrantes. A serviço desta idéia, Makhmalbaf se atrapalha, se confunde, se perde. Faz um filme fraco sobre uma realidade forte. Um filme perdido, sem estilo (e estilo não significa beleza nem estética), sem condução, sem empatia. A seu favor, uma denúncia prévia e uma realidade posterior. Não basta.

Mas talvez seja apenas justo que a realidade lhe escape ao controle, porque é assim mesmo. Neste sentido é um filme até comovente de uma pessoa tentando aprisionar a realidade num formato que cisma em escapar-lhe das mãos. Um filme humano na sua falha, mas errado nas suas premissas. Um filme sobre a realidade que claramente chegou no local com as idéias já prontas, as imagens pensadas, a denúncia montada. Nada do que houve em volta pôde modificá-lo.

É um filme urgente, é um filme importante. Não é um filme bom.

Eduardo Valente