Insônia,
de Dario Argento
Non ho sonno, Itália,
2001
Argentiano para iniciantes
Dario Argento é
o tipo do diretor que possui um verdadeiro e leal séquito de fãs
pelo mundo. Temos certeza (tá bom, mais esperança que certeza...)
que alguns deles lêem a Contracampo. Por isso, faz-se necessário
uma explicação: este foi o primeiro filme do diretor visto
no cinema pelo que vos escreve. Porque é importante dizer isso?
Simplesmente porque os diretores que possuem seja um culto constante de
fãs, seja vários estudos mais profundos de sua obra (pensamos
num Godard, por exemplo) representam casos complicados na hora de se sentar
para escrever sobre um novo filme. Porque é fato que se o crítico
não conhece boa parte de sua obra, pode acabar deslumbrado ou irritado
por fatos que são uma constante já conhecida, e possivelmente
entediantes para quem lê. Por isso é tão importante
estabelecer de onde se olha para esta obra, para que mesmo os fãs
ferrenhos possam de repente se surpreender com um olhar fresco, sem idéias
pré-fabricadas. O máximo que este crítico aqui havia
visto de Argento nos cinemas foi o clássico trailer do Terror
na Ópera, e, mesmo em vídeo, só viu este trabalho
do diretor. Mas, vai sanar este erro em breve. Porque o fato é
que assistir a Insônia, este novo trabalho de Argento, foi
uma das mais divertidas e enriquecedoras experiências vividas no
cinema nos últimos tempos.
Se havia qualquer
dúvida sobre isso no ar, a primeira sequência do filme acabou
com todas as defesas. Trata-se talvez do mais belo balé de enquadramentos,
cortes, cores, iluminação, travelings e trilha sonora que
se vê em algum tempo. Uma cena de suspense que serve para exemplificar,
para os que tenham alguma dúvida, o que significa a palavra "clima"
em cinema. Na verdade, Argento é um diretor que faz a palavra "terror"
possuir sentido novamente. O rosto da mulher que sai nervosamente de uma
apertada porta do trem compõe um plano de opressão e indefensabilidade
fenomenais. A música é também em si mesma um "workshop"
de suspense, e nunca fica repetitiva, sempre incomoda cada vez mais. De
toda esta capacidade de Argento filmar o suspense, o terror, e criar seus
climas, eu estava ciente mesmo antes de entrar no cinema (embora despreparado
para o tamanho do talento nas áreas). O que estava fora do meu
controle era o que se seguiria.
Sim, porque Insônia
não é apenas um exercício de virtuose técnica.
É acima de tudo, um atestado de princípios. Para Argento,
cinema É o exagero. É o sangue derramado sem medo de ridículo,
é o clichê da trama elevado a enésima potência
onde o risível torna-se o arquétipo e vice-versa, é
a crença de que nenhum suspense é suspense demais, é
a crença acima de tudo de que existe um espaço-tempo chamado
CINEMA no qual todas as regras que regem o dia a dia (lógica, leis
da física, senso de ridículo, etc) cessam de existir em
nome de uma nova realidade que só toma forma pela junção
de imagens e sons editados que constrói o filme. Nesta realidade
o engraçado vira aterrorizante, o horrível fica engraçado,
e o espectador não mais sabe se ri de nervoso ou por ser hilário
o que vê. Tudo o que ele sabe é que a catarse é inevitável.
O cinema de Argento é, neste sentido, um cinema FÍSICO.
Não apenas pelos efeitos especiais e secreções que
jorram na tela, nem pela presença da câmera como um personagem
impressionista. Mas, acima de tudo, porque o contato do espectador com
o que ele assiste é físico. Ele sente o filme passar. Gargalha,
pula na cadeira, se encolhe. Vive algo que só o cinema pode proporcionar.
Os personagens reagem aos fatos como se fossem enviados dos espectadores,
no sentido que só se eles vissem e ouvissem o que nós vemos
e ouvimos (música, cortes, travelings), se justificariam as reações
que vemos nas telas. Este é o grande golpe do cinema de Argento:
em nenhum momento o que é encenado poderia se entender como simplesmente
"estando lá", sendo captado por uma câmera imparcial. Pelo
contrário: o que está lá só existe com a câmera,
com os sons, com a montagem, para nós. Um filme de Argento não
existe sem espectadores. Mesmo explicitando de forma tão radical
o ilusionismo do cinema, o filme não perde (pelo contrário)
seu poder sobre o espectador, renegando a idéia de que o cinema
para ser ilusionista precisa ser realista.
Em termos de trama,
o ele parece misturar a complexidade rocambolesca de um filme de suspense
com a própria paródia exagerada que poderia ser feita dela.
Não sabemos se acompanhamos ou simplesmente gargalhamos. Fazemos
os dois. Os personagens estão em cena por motivos completamente
óbvios, cada um deles possui função narrativa determinada.
Neste sentido, é especialmente importante notar como as mulheres
neste filme só aparecem para serem mortas. Esta é sua função,
nem mais nem menos. O elemento frágil, perante o constante movimentar
de homens que investigam ou matam. Algumas cenas são incrivelmente
gráficas, mas é difícil imaginar uma forma mais distanciada
de exibi-las. Elas agem no campo da fábula, justo pelo seu exagero,
pelo seu risível, pela sua motivação claramente "anedótica".
Que mais dizer? Muito
mais, talvez, exceto que não se pode descrever em palavras o que
mais importa no cinema de Argento. Não se descreve o plano fenomenal
que percorre os pés de personagens pelo tapete até chegar
a um assassinato. Não se descreve o susto impressionante que envolve
uma mala e um boneco. Não se descreve o personagem de Max von Sydow
e seus inacreditáveis diálogos com o papagaio. Não
se descreve a atuação do intérprete de Lorenzo. Não
se descreve a trilha sonora de Goblin. Não se descrevem os travelings
frontais mais fortes e diretos do cinema atual. Nada disso se descreve,
isso se filma, isso se monta, isso se assiste. Argento é, acima
de tudo, isso: CINEMA. Ainda bem.
Eduardo Valente
|
|