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Uma
História de Huey P. Newton,
de Spike Lee
A Huey P. Newton Story,
EUA, 2001
O que mais impressiona
na carreira de Spike Lee como um todo, e neste sentido este novo filme
se encaixa perfeitamente, é sua opção clara de tomar
para si a responsabilidade de ser a voz negra raivosa que soa no sistema
cinematográfico americano. Não há filme na sua trajetória
que não se encaixe neste papel. Claro que, dentro desta tentativa,
há os filmes que falam de forma menos obviamente política
(e podemos pensar em Crooklyn, Mais e Melhores Blues ou
He Got Game) e os filmes mais abertamente e frontalmente discursivos
(Faça a Coisa Certa, Malcolm X, A Hora do Show).
Mas, no fundo, há muito pouca diferença entre as duas vertentes,
porque simplesmente elas se complementam numa ambiciosíssima tentativa
do diretor de ser responsável por uma historiografia do pensamento
e ação negros, e ao mesmo tempo não deixar de ser
um cronista do hoje, das inquietações mais urgentes.
Neste recorte, certamente
Uma História de Huey P. Newton está no ramo mais
claramente político da obra do diretor, talvez seja inclusive sua
experiência mais radical. Mas, o que não pára de impressionar
é o tamanho da missão incorporada por ele, pois não
só ele fala alto, mas ele fala sobre muitas coisas, o tempo inteiro.
Neste sentido, nenhum personagem podia ser mais favorável ao discurso
do diretor do que Newton, ou pelo menos esta encarnação
dele escolhida pelo ator-autor Roger Guenveur Smith. Sim, porque não
dá para entender este novo filme de Lee sem Smith, já que
trata-se da adaptação de um monólogo teatral escrito
e interpretado por este (e talvez a palavra médium venha sim à
cabeça tal o nível de entrega). É portanto, um retrato
muito mais de Smith do que de Lee. Mas é um retrato com o qual
Lee se identificou e o qual tomou para si, com grande paixão.
Duas características
principais saltam aos olhos. Primeiro, a extrema coragem de optar por
este filme a esta altura de carreira. Deixa claro o tamanho de sua consciência
do seu papel social e histórico no cinema americano. Trata-se,
afinal, de um trabalho absolutamente radical, no formato e no conteúdo.
Seja pela estrutura de um monólogo incessante e caudaloso, muitas
vezes incoerente (estudadamente, aliás), sempre raivoso, recitado
numa dicção rápida e de andamento sufocante. Seja
pela limpeza visual extrema, encenando tal fala como uma apresentação,
um one-man show onde a platéia fica na penumbra o tempo
todo, cabendo à câmera circular pelo espaço, pelo
personagem, apenas com o uso eventual de back-projections ou alusões
sonoras. Seja pela realização em vídeo, sem grandes
recursos. Só não há dúvidas de que é
uma opção corajosa.
No conteúdo,
impressiona o seu approach desta figura controversa, onde fica
clara a devoção e simpatia de autor e diretor por ele, mas
não caindo no golpe fácil da mitificação.
O personagem nunca é menos do que contraditório na sua raiva
misturada com amor (inclusive ele discursa sobre a relação
amor e ódio), na sua relação com a arte (música
e poesia principalmente, mas sobra para o cinema também) e com
a realidade, na sua perspectiva histórica e social. Smith é
soberbo em muitas cenas, em outras cai vítima de um tentador overacting,
mas constrói o retrato de uma pessoa que consegue ter opiniões
claras e diretas, sendo ainda assim um poço de confusão.
Sua fala caudalosa muda de rumo em muitos momentos, volta atrás
e pula adiante, renega o que disse para reforçar algo mais adiante.
Mas, acima de tudo, é cheio de paixão, energia e revolta,
e estas características básicas o cineasta e o autor conseguem
atingir nas suas partes.
Lee retoma a linha
de A Hora do Show no que diz respeito a um certo levantamento audiovisual
da história do negro, e mais uma vez abre e fecha o filme com clipes
impressionantes. Mas, ao contrário deste outro filme, aqui a confusão
do discurso funciona mais, por ser uma característica inerente
ao seu próprio objeto de filmagem. Ao contar esta página
da história, ele incorpora elementos atualíssimos da cena
negra americana (artística, esportiva, política) ao discurso,
o que empresta grande frescor ao que é dito, ainda mais em se tratando
de uma clara licença poética, tendo o próprio Newton
falecido em 1989. Mas, isso configura o filme de fato como uma incorporação
da figura dele por Smith, e neste caso faz todo o sentido. "Incorporação"
talvez seja a principal palavra ao se referir ao filme como um todo, porque
a maior qualidade do trabalho é a sensação de "ser
um" com o discurso, com os ideais, com os objetivos do seu objeto. Não
dá para separar personagem e cineasta no que dizem. E é
esta sensação que torna o filme algo diferente, novo, vital.
Um belíssimo trabalho numa belíssima obra, que vai pouco
a pouco se tornando imprescindível ao entendimento do mundo hoje.
Eduardo Valente
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