Hedwig - Amor, Rock e Traição,
de John Cameron Mitchell


Hedwig and the Angry Inch, EUA, 2001

 

O avesso do sonho

Já se tornou lugar-comum se dizer de uma certa produção cinematográfica americana recente que ela revela "o que existe por trás" do tão ambicionado sonho americano, o "american way of life". Filmes como Beleza Americana ou Felicidade foram louvados justamente por este tal "desvendamento" de um segredo. Ora, qualquer um com um pouco mais de horas de vôo na cinefilia, que tenha um referencial de um Apocalypse Now (1979), de um Taxi driver (1976), de um Perdidos na Noite (1968), até mesmo de um Cidadão Kane (1941), vai saber que, retrocedendo no tempo, tão velho quanto o sonho americano é o retrato do seu oposto. Se saímos do cinema para a literatura então, voltaremos alguns séculos. Mas, pode-se alegar que o segredo destes filmes mais novos é tratar da pessoa comum, dos subúrbios, com esta ironia. Ora, é só voltarmos um ano no tempo e lembrarmos da sensacional retrospectiva de John Waters no Festival do Rio BR 2000; ou se quisermos voltar dois anos, da de John Cassavetes, e vemos que nada pode ser mais demolidor do que estes trabalhos. E se pensamos assim, começamos a ver que esta "lenda" é quase um golpe de marketing bem urdido para vender filmes, no fundo, absolutamente comuns, e até mesmo moralistas.

Tudo isso para poder dizer que novamente o Festival do Rio nos apresenta um real sopro novo nesta tradição secular norte-americana de exercitar a auto-ironia, a lavação da roupa suja em público. Neste momento específico de um recrudescimento do tal "orgulho americano" por conta dos acontecimentos recentes, é ainda mais oportuno e subversivo poder assistir a este Hedwig - Amor, Rock e Traição (embora o subtítulo em português pareça de novela mexicana, não é o caso), uma "biografia" de um completo anti-herói deste sonho americano.

O grande barato do filme é escolher usar um formato que representa tipicamente este tal orgulho americano. Fazendo não só um musical, mas em especial um musical da Broadway, que pega este modelo à risca (desde as canções que fazem a trama andar, até o clima feérico de cenários e encenações), e faz graça com ele. Não apenas a graça inocente da galhofa, mas tocando tanto em estrutura como em diálogos e canções em alicerces muito sérios da vida americana. O mito do imigrante como construtor da nação, a questão da sexualidade, a figura do ídolo das multidões, o rito do possível processo penal como fio condutor da narrativa. Atirando para todos os lados (indo de referências à ópera-rock Tommy a um muito bem-humorado uso da história recente, com direito a queda do Muro de Berlim), o filme acerta mais é nos pequenos detalhes. Nos números musicais ambientados em restaurantes vagabundos, lavanderias e campos de "trailers" (imagens clássicas da América menos glamurosa), nas letras surpreendentes (a que revela o porquê do título do filme em inglês é um achado) e principalmente na capacidade de deixar o espectador completamente aturdido pela narrativa corajosa, inesperada e muito bem costurada. Embora após uma primeira hora quase brilhante o filme realmente perca um pouco o ritmo no final, o que temos é um filme que consegue deliciar e divertir o espectador num nível, enquanto no outro trabalha contra todos os mitos que retrata. Nada mais americano.

Eduardo Valente