Os
Demônios Batem à Porta,
de Jiang Wen
Guizi Lai Le, China,
2000
Os prazeres do
clacissismo
Faz tempo que não
surge um filme assim. Um filme que, mesmo bizarro em momentos e ousado
em sua forma, consegue tirar tanto proveito do velho modelo "tudo
na tela", caro ao cinema clássico. Pois bem: Os Demônios
Batem à Porta tem todas as características caras a um,
digamos, Kurosawa: um sentido muito fino da narrativa sem entretanto fazer
o mínimo questionamento do caráter fetichista do plano
característica principal do cinema moderno.
Já o começo
do filme é de tirar o fôlego. Uma sucessão de planos
curtos e fechados em detalhes dos personagens apenas nos conseguem fazer
entender tudo que acontece. Numa madrugada, um casal faz amor quando é
surpreendido por alguém que bate à porta. O homem, Ma Dasan,
se apressa em esconder a mulher (é um amor clandestino), e imediatamente
que abre a porta lhe são jogados dois sacos pela sala. Uma voz,
assustadora e simplesmente intitulada "Eu", diz que está
deixando esses dois sacos e que voltaria para pegá-los cinco dias
depois, na noite de ano novo. A cena decorre em tom de farsa como,
aliás, grande parte do filme , com uma impressionante atuação
dos intérpretes, no tom certo entre a comédia rasgada e
a severidade necessária para permanecer contando uma história
forte sobre relações humanas, sobrevivência e destruição.
Acontece que os dois
sacos jogados à porta de Ma Dasan, que devem restar intactos até
a volta do tal "Eu", são duas pessoas, um japonês
do exército imperial, e um chinês, que serve de seu tradutor.
Estamos na china em 1945, pouco antes da fragorosa derrota causada pelas
duas bombas atômicas. O Japão ainda tem sob seu controle
a China, e volta e meia observamos a chegada dos intendentes japoneses
que cruzam os vilarejos para assim exercerem seu poder. "Eu"
deixou instruções bem claras: interrogar os prisioneiros
e deixá-los vivos até o ano novo, sob pena da cabeça
de Ma Dasan. Só que Ma Dasan é esperto: único a ter
ouvido a ameaça da voz sinistra que trouxe os sacos, ele dirige
a ameaça de morte à vila inteira.
Os Demônios
Batem à Porta é em muito um filme sobre a necessidade
de traduzir para se adaptar (ou seja, para não morrer). Assim como
Ma Dasan mente movido pelo medo de sua morte, o tradutor chinês
não traduz certo nenhum dos depoimentos do soldado japonês.
Numa cena hilária de fato, o cinema vem abaixo em diversas
partes do filme , o japonês declara guerra, pede para morrer
e xinga os chineses. O tradutor adapta: "ele é um cozinheiro,
jamais matou qualquer chinês, e pede para não morrer".
Mesmo que Wiang Jen saiba tirar todo o proveito da comicidade dos momentos
de tradução em outro, quando o japonês pede
para o tradutor ensinar-lhe palavrões para xingar os chineses,
ele lhes ensina elogios , o caráter explicitamente humano
da intriga não sai de cena em momento algum. São dias fortes,
carregados de importância. Voltando à história: o
tal "Eu" nunca retorna, e, passado o ano novo, com pouco estoque
de comida, o povo da vila pensa no que fazer com os dois prisioneiros.
Filmado num preto
e branco primoroso exceto por alguns segundos finais, a cores ,
que jamais insiste em estetizar demais a cena, Os Demônios Batem
à Porta é tão belo quanto inusitado, inesperado.
O filme mudará de tom quando for necessário, passando da
comédia dramática ao teatro do absurdo no momento em que
a situação já não mais nos permite rir. Quando
de fato o segredo dos prisioneiros é revelado aos governantes japoneses,
o intendente prepara uma festa para comemorar a sinceridade e os bons
serviços em alimentar por meses o soldado japonês. Mas a
festa é também uma mera tradução: trata-se
de apenas um subterfúgio para poder melhor destruir todo o vilarejo
e assim poder preencher a grande sede de assassinato do povo japonês
quando vemos o vilarejo em chamas, ouvimos a declaração
de derrota proferida da boca do imperador Hiro-ito.
Ma Dasan é
um dos poucos que continua vivo, tendo saído ileso do ataque que
destruiu seu vilarejo e assassinou friamente inclusive mulheres e crianças.
Semanas depois, os japoneses são prisioneiros de guerra, o Partido
Nacionalista (Kuomintang) assume o poder e Ma Dasan vende cigarros na
rua. Agora, são os japoneses que estão na marginalidade,
como a mulher que pede ao camelô de cigarros que a esconda. Quando
um soldado japonês gozando de uma liberdade acentuada para
quem infligiu dores aos chines por anos vai comprar um cigarro,
é o momento decisivo em que Ma Dasan não consegue mais se
segurar: munido de uma machadinha, ele vai perseguir e matar quantos japoneses
for possível. (o leitor que não deseja saber detalhes do
final, pare de ler por aqui)
Terminará preso
e julgado pelo governo chinês, sendo condenado à decapitação
em praça pública. O homem que o matará é aquele
que ele, Ma Dasan, alimentou por meses. Cortada a cabeça do herói,
o filme quebra por alguns pequenos instantes com sua estética:
em cores, vemos os últimos instantes de consciência do protagonista
do filme, em que o soldado japonês devolve a espada ensangüentada
a seu líder. Em cores: a fábula pacifista de co-existência,
filmada toda em preto & branco, não passa de mera fantasia
frente aos demônios que batem à porta. E esses demônios
não são os japoneses ou os chineses: é acima de tudo
um poder totalitário, que vem do céu (ou da voz do "Eu",
provavelmente proferida por um soldado do partido nacionalista), de um
poder de intolerância e de domínio insensato sobre os corpos.
A violência e as estupidezes não têm pátria:
elas se partilham entre os grandes, e são acima de tudo o uso de
um saber: um saber de enganar para destruir uma vila chinesa pelo recalque
de ter perdido uma guerra, um saber que erige um discurso em que um chinês
deve morrer porque não soube frear seu ódio contra os inimigos.
Os Demônios Batem à Porta é além de
tudo incrivelmente bem-filmado, estimulante, dono de uma assinatura particular,
nada parecida com o que conhecemos. Não há pudor nenhum
para que se diga com a boca cheia: obra-prima.
Ruy Gardnier
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