A Freira e a Tortura

Brasil, 1983

 

Sob muitos aspectos este pode ser considerado o filme menos bem sucedido de Candeias, especialmente no que esse refere ao resultado da mescla da adaptação da peça de Jorge Andrade com o seu estilo muito peculiar. Porque, embora mesmo não conhecendo o texto da peça dá para entender qual parte do filme se refere ao substrato teatral e qual parte é complemente inserida por Candeias. Mas, mesmo com essa combinação que não chega ao seu melhor resultado, é um filme com inúmeros pontos de interesse, a começar pelo seu tratamento bem direto do tema da tortura e da perseguição política ainda no período da ditadura, mesmo que em seus extertores. Data, afinal, do mesmo ano de Pra Frente Brasil que foi tão perseguido.

No caso de Candeias, a parte que se refere à tortura é sem dúvida a base do texto teatral, por sua vez baseado num fato real de uma freira que é presa e torturada por dar aulas para pobres. É no ambiente que cerca os personagens que Candeias insere seu toque pessoal, tanto no início em que vemos o mergulho da freira no mundo dos desvalidos tão caro ao diretor, quanto principalmente no ambiente doentio da prisão com seus jogos sexuais animalescos, brutais, inesperados e, até mesmo, distrativo com relação ao centro da trama. Embora, paradoxalmente, seja esta ambiência o que mais dá interesse ao filme. Porque a trama em si da relação entre torturador e torturada não chega a ser satisfatória, porque nunca foi o forte de Candeias o desenvolvimento de personagens que é o que se pede desta situação. Tanto Vera Gimenez quanto David Cardoso parecem altamente incomodados com seus papéis, e nunca dão a eles qualquer verdade, sob qualquer aspecto que se julgue esta.

No entanto, há inúmeros pontos de interesse no filme. A começar pelo trabalho fotográfico, talvez um dos mais elaborados da carreira do diretor, com um inquietante jogo de luz e sombras, com uma iluminação sempre forte de cima para baixo, que torna os rostos dos atores quase invisíveis. Um outro ponto de interesse é o retrato que o filme propõe da vida particular do torturador, anos antes de Bruno Barreto fazê-lo em O Que é Isso Companheiro? E fica clara a diferença principal de enfoque: enquanto Barreto tenta mostrar que mesmo o torturador é um ser humano, Candeias mostra que mesmo um ser humano pode ser torturador. Parece sutil, mas a diferença é gigantesca. Mas, o ponto mais interessante e perturbador do filme é, sem dúvida, a questão sexual. Sempre presente nos filmes de Candeias, até como chamariz de público sem dúvida nenhuma, o que causa extrema impressão nas cenas deste filme é que elas são ainda mais grotescas e anti-eróticas do que o que já é o habitual do cinema dele. Chegam a ser efetivamente chocantes, com seu enfoque absolutamente animalesco, doentio, uma pulsão absolutamente instintiva dos personagens.

E tudo se encaminha para um bizarro final metafísico, no qual Candeias parece dizer que uma vez livres de suas "fardas" e "hábitos" os seres humanos acabam se encontrando, o que na verdade parece um apaziguamento da cena anterior na qual os detentos terminam matando o delegado. Este personagem, inclusive, poderia resultar fascinante nas mãos de um ator que parecesse menos constrangido do que David Cardoso em interpretar um completo calhorda obcecado e paranóico. E, ainda mais frente à freira unidimensional de Vera Gimenez. Problemas que seriam menores em um outro filme dele, mas que aqui incomodam um pouco mais justamente por se basear neste texto teatral que pede um encaminhamento mais centrado nos personagens, o que falta a Candeias o cuidado e interesse em realizar completamente.

Eduardo Valente