O Fio da Inocência,
de Atom Egoyan


Felicia's Journey, Canadá/Reino Unido, 1999

 

As primeiras imagens de O Fio da Inocência criam uma atmosfera encantadoramente estranha. Um estranhamento que passa pelos curiosos hábitos que o personagem de Hoskins vai nos dispondo diante dos olhos. Diante da TV, acompanhando um programa culinário, o homem demonstra uma extrema meticulosidade em cada gesto e uma dedicação quase religiosa àqueles afazeres. Diante dele, a figura retrô de uma mulher de uns quarenta anos, típica dona de casa dos anos 50, ditando as receitas perfeitas que lhe encantam os olhos...

Esse personagem curioso se apresenta como um enigma que instiga aos olhos e a imaginação. Fica claro, desde o início, que há algo além de um simples hobby naquela repetitiva rotina na cozinha. A TV, posta numa espécie de altar, dá uma presença fantasmagórica à mulher e se reflete nos olhos do excelente trabalho de Bob Hoskins.

Aos poucos, a narrativa do filme nos revela o dia-a-dia daquele homem e sua ocupação profissional: dono de um buffet que serve a alimentação em um complexo industrial de Birmingham, Inglaterra. Os ruídos da indústria se contrapõem ao encantamento da trilha sonora saudosista que o homem escolhera para si mesmo...Uma trilha sonora ouvida num antiquado toca-discos de vinil... Quando a personagem da jovem Irlandesa grávida que foge para a Inglaterra à procura do pai de seu filho cruza a vida do curioso mestre cuca, o estranhamento do personagem começa a insinuar seus fundamentos...

Aos poucos, o personagem de Hoskins começa a cercar a vida da jovem, começa a encaminhar (sem que ela saiba) a vida daquela menina perdida na Inglaterra... Num súbito flashback, Egoyan nos revela imagens instigantes: vídeos caseiros em que diversas meninas ("perdidas" como a jovem protagonista) contam suas histórias para o mesmo senhor respeitável e acanhado... Aos poucos, o homem começa a inventar histórias, disfarçar um passado, uma mulher doente, uma família. Tudo para enredar a menina irlandesa numa ligação de amizade quase paternal que começa a revelar as segundas intenções do cozinheiro.

De certa forma, é no momento em que o filme estabelece o seu nó narrativo, que se perde grande parte de seu atrativo. Egoyan acaba deixando muito claras as intenções do homem, sabemos que ele mente o tempo todo, acompanhamos suas ações escondidas, seu plano para abortar o filho da jovem, vemos imagens de sua infância de forma explicativa... Acabamos conhecendo demais o personagem de Hoskins e seus enigmáticos olhares se diluem nos estereótipos da criança reprimida que se torna um maníaco. Grande parte do filme se perde aqui...

Restam, porém, alguns sinais extremamente interessantes: a idéia de um antagonista sem bondade ou maldade, cuja ação assassina é fruto de um sentimento de cuidado e guarda. Seus assassinatos, como ele mesmo diz, são atitudes de Cura, são a tentativa de salvar no outro, aquilo que não se soube salvar em si mesmo. O cúmulo do egoísmo na tentativa de ajudar. Uma ajuda que, ao contrário das pregações religiosas de algumas personagens do filme, não quer levar à salvação de um paraíso, mas colocar aquelas jovens para descansar... em paz.

Essa paz da morte é negada pela personagem da menina. Essa paz não é aquela que ela procura... Sua fuga porém, não se resume a um retorno à mesma vida de antes: a jovem se distancia de seus sonhos puristas que a levavam a imaginar um futuro com seu sonhado príncipe inglês... De certa forma, seu caminhar pela praça nos últimos planos do filme, são a reinvenção de seu modo de se colocar diante de si. De se colocar diante do mundo que a cerca, não mais temendo ou se iludindo com ele. Mas se colocando adiante e consciente de sua fragilidade, de sua perdição, de que só poderá descansar em paz após a morte...De que a vida não pode ser um descanso de um palácio almejado, mas uma constante caminhada em labirinto... Verdade que o personagem de Hoskins é incapaz de suportar e, perdido, numa última tentativa de cura, resolve terminar com sua própria ilusão.

Felipe Bragança