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Há raros prazeres que só um festival é capaz de dar. Porque, por mais que seja doloroso caminhar de filme em filme por multidões aglomeradas, filas angustiantes, sessões lotadas, etc., há coisas que só um festival de cinema pode possibilitar. Uma delas, talvez a principal, advém inclusive de um caráter talvez deglutidor, explorador demais do cinéfilo: o fato de ver quatro, cinco filmes por dia, entrar numa sala mal tendo saído da outra. Nessa correria, às vezes tão penosas para quem acaba de ver uma obra-prima e deseja prolongar o gosto desse filme por mais um tempo mas já tem ingresso comprado para outro filme, há uma suprema felicidade: a de conseguir logo depois entrar em outro mundo vigoroso, com um forte poder de instauração, e ao mesmo tempo completamente diverso, oposto ao filme anterior. Esse mágico momento aconteceu ontem, entre uma sessão de Millenium Mambo, de Hou Hsiao-hsien, e 'R Xmas, de Abel Ferrara. Nada mais distante um do outro. O cinema de Hou é feito de densidades, pesos, ebriedade possíveis apenas a um mestre das formas e da luminosidade no cinema. Ao contrário, o cinema de Ferrara é rápido, nada denso, as coisas se passam rápido demais ('R Xmas decorre no espaço de um dia), sempre localizado geograficamente e temporalmente, enquanto o cinema de Hou faz questão de jamais deixar nada muito fácil à compreensão do espectador. Os dois cineastas são muitas vezes comparados à droga. Mas, mesmo assim, as drogas são distintas: Hou está próximo do ópio, da maconha, das drogas de viagens, enquanto o cinema de Ferrara é decididamente mais próximo, pelo caráter excessivo dos personagens e pelo ritmo frenético de seu cinema, do ecstasy ou da cocaína (que está sempre presente nos hábitos dos personagens de seus filmes). Não entraremos aqui no mérito de analisar qualquer um dos filmes (as duas críticas sairão nos próximos dias), mas acima de tudo atentar para o caráter onírico, quase transcendente, em sair de uma experiência x e entrar numa y, sua oposta. Experiência que não está em nenhum dos filmes, mas no meio deles, jamais realizada a não ser pela especificidade de uma operação entre outras: a do cinéfilo; que é absolutamente extracinematográfica considerando cinematográfica apenas a relação que o espectador tem com o filme que ele está vendo dentro de uma sala escura , mas deriva exclusivamente da um dos processos expressivos do cinema: a montagem. Montagem, para seguir uma das citações mais recorrentes nos filmes de Godard, que deve ser tão mais bela quanto os elementos que ela junta estão distantes um do outro. Uma teoria que certamente não serve para todos os tipos de montagem, mas que certamente consegue captar a inteireza dessa experiência possível apenas ao devorador de cinema, daquele que realiza com ele uma experiência antropofágica, autofágica até, pois sabe que no limite não há muita diferença entre os filmes e ele próprio. Um prazer sinfônico, em que o compositor no entanto é o mais puro acaso. Pois o prazer da sinfonia reside justamente na mudança dos andamentos, nas acelerações e nos ralentamentos, nas repetições e nas novas aparições das melodias. Um dia bem escolhido de festival pode assumir esse mesmo caráter sinfônico, uma sinfonia certamente randômica, casual, mas entretanto surtindo um efeito real e exato: um maravilhamento de como o cinema tem uma amplitude tão vasta que pode ir de um extremo a outro. No caso, a arte delicada, hipnótica de Millenium Mambo, filme poderoso em que cada cena pode pregar uma peça no espectador, e a arte direta, rápida e sem metáforas numa plavra, esguia de 'R Xmas e da obra de Abel Ferrara. Entre os dois, nada senão a persistência e o amor daquele que mantém vivo todo o imaginário do cinema e consegue operar as devidas correlações e disjunções: o espectador. E esse prazer de montagem é só dele. Ruy Gardnier |
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