Como Matei Meu Pai,
de Anne Fontaine


Comment j'ai tué mon père, França, 2001

Como eu matei meu pai gira em torno de um mistério: o que é um pai? Pois não basta ser o genitor para ser o pai. O que está por trás desta figura do poder e do amor, provedor da vida e senhor da Lei, esta figura chave da cultura judeu-cristã? Após assistir ao filme de Anne Fontaine, vêm-me à mente imagens (Saturno devorando um de seus filhos, de Goya) e frases ("Pai, porque me abandonaste?") a delinear o sofrido arcabouço da nossa concepção do pai, melhor: da nossa visão do mundo. Um filme para tempos de orfandade, quando o Ocidente, já descrente das religiões, confronta-se à insuportável solidão do homem. Mas andemos a ele.

Jean-Luc é um médico bem sucedido, rico e conceituado, graças à clínica de gerontologia que possui na pequena e burguesa cidade de Versalhes. Especializado no combate ao envelhecimento, atende exclusivamente a uma clientela abastada. Casado com uma moça de família impecável, tendo o irmão mais novo como motorista e caseiro, e sua bela assistente como amante, sua vida parece perfeitamente pautada, um modelo de ascensão social. A volta inesperada do pai, que havia sumido, abandonando a família quando Jean-Luc ainda era criança, trará à tona feridas antigas, revelando o verdadeiro rosto do universo de Jean-Luc.

Resumiria talvez o filme dizer que Anne Fontaine faz um belo uso das sombras. Nas imagens noturnas carregadas de mistério, rostos cujo olhar se perde na escuridão. Sombras a forjar também a complexidade das personagens. No papel do pai, Michel Bouquet compõe um ser inacessível, deseperadoramente superior aos olhos do filho. Um personagem cuja opacidade nada deixa transparecer além da sua beleza de ancião e da voz profunda, porém muito mais humano do que o monstro convenientemente imaginado pelo filho. Charles Berling compõe um Jean-Luc impotente diante da figura paterna, paralisado pelo misto de amor e ódio que o toma, ao mesmo tempo vítima e algoz, enredado num vazio por ele próprio criado.

As relações vão se tecendo aos poucos, sutilmente, carregadas de ambiguidade. Aqui e ali, descortinam-se aspectos, sentimentos, desejos. Como eu matei meu pai é um filme da contenção dos sentimentos, através uma mise-en-scène sóbria, perfeitamente controlada. Anne Fontaine cria um universo crepuscular e imóvel, enredado em pulsões contidas, desejos reprimidos. Por trás do verniz das boas maneiras e da afeição cordial adivinha-se um lamaçal de sentimentos confusos, de sofrimento e ressentimentos recalcados, a corromper as relações entre as personagens. Sem cair em psicologismos, a cineasta cria um filme inquietante, algo bergmaniano tanto no tema como no uso de certas figuras de linguagem, cujo o maior mérito talvez seja recusar-se a adiantar respostas.

Carim Azeddine