O Fabuloso Destino do Cinema Francês


O cinema francês vai bem, obrigado. Ou melhor, UM dos cinemas franceses vai bem. Aquele pertencente à vertente comercial do espectro cinematográfico, vulgo cinemão, vem enfrentando os americanos em seu próprio terreno e tem obtido vitórias significantes em termo de mercado. O cinema comercial francês aperfeiçoou as suas armas mercadológicas, aprendeu as lições americanas, e vem retomando o espaço conquistado, atuando de maneira extremamente profissional. O filme é doravante calibrado para ser um produto comercialmente eficiente no mercado de consumo. O resultado está aí: os quatro filmes mais vistos em Paris nos últimos doze meses são franceses, ficando na frente de Dinossauro, Shrek, Corpo Fechado e demais produtos hollywoodianos. O Destino Fabuloso de Amélie Poulain, verdadeiro fenômeno popular, encabeça a lista seguido de perto pelas comédias La Vérité Si Je Mens 2 e Le Placard, e pelo filme de ação Le Pacte des Loups.

A França continua apostando em certos gêneros que tradicionalmente sempre afeiçoou. Adaptações de obras literárias, filmes de época, comédias. A novidade está na presença maciça e cada vez maior da tecnologia neste tipo de filme. Sem deixar de lado seus gêneros de predileção, o cinema francês vem incorporando cada vez mais efeitos especiais oriundos da técnica digital, buscando uma dimensão espetacular outrora desprezada, seja por desdém, seja por complexo de inferioridade. O filme mais emblemático desta tendência talvez seja o recém lançado Vidocq, adaptação de uma antiga série de TV, inteiramente rodado em HD (imagem digital de alta definição), estrelando Gérard Depardieu e dirigido por Pitof, um dos maiores especialistas de efeitos especiais do momento. Sucesso absoluto desde a estréia, o filme baseia-se na velha receita americana: uma estrela, muita ação e efeitos especiais. O filme compensa uma trama capenga com um visual extremamente trabalhado.

Um trabalho de sedução superficial do olhar está em obra neste cinema do impacto visual. Em O Destino Fabuloso de Amélie Poulain Jeunet lança mão de todo um arsenal de efeitos para criar momentos oníricos e construir um universo visualmente kitsch, surreal e principalmente sedutor, na mesma linha das personagens dos seu filme, calculadamente esquisitos e doces. A estratégia destes filmes é claramente angariar o maior número de espectadores, misturando muitas vezes o maior número de gêneros para agradar a gregos e troianos. Le Pacte des Loups é isso: um filme de aventuras, de terror, de amor, de kung-fu.

Sim, de kung-fu. Como os americanos, os franceses também incorporaram as artes marciais na receita do sucesso. Os personagens mais diversos, oriundos das épocas mais remotas, são experts em artes marciais O modelo americano, baseado no aspecto espetacular da arte cinematográfica, tornou-se uma verdadeira escola. Os Rios Vermelhos, Taxi 1 e 2, Yamakasi, formam uma constelação de filmes seguindo o padrão do cinemão americano (ação, perseguições, explosões), cuja estrela guia a nortear toda uma geração é claramente Luc Besson. Quer se goste ou não do cinema de Besson, é mister reconhecer que o homem descomplexou os profissionais franceses em relação ao cinema de entretenimento, e ao seu desejo recalcado de imitar Hollywood.

O único gênero dentro do cinema de entretenimento que parece resistir à tendência tecnicista é a comédia. Nesta área, a França vem retomando com sucesso uma longa tradição de comédias populares. A tendência atual está para a comédia de costumes, retratando de forma caricata personagens oriundos de grupos sociais "marginais": o mundo dos gays, o da jet-set, o dos judeus sefardim. Nenhuma novidade neste lado do front, as mesmas velhas receitas de bolo continuam agradando. Minto. Já ia me esquecendo da série dos Visiteurs, relatando as aventuras de dois personagens medievais transportados para os nossos tempos graças à mágica dos efeitos digitais, e do Asterix, verdadeiro almanaque de efeitos especiais, e passarela para o desfile de estrelas do show-biz. Os filmes digitalmente modificados estão definitivamente em toda parte.

Passemos então para um outro continente, bem mais complexo, o do dito cinema de autor. Evitarei aqui a armadilha de tentar delimitar sua fronteira com o cinema dito comercial, e o considerarei de forma o mais abrangente possível. Difícil estimar o sucesso deste tipo de cinema. Existe com certeza um público para o cinema dito de arte, mesmo se a atual tendência de amortecer as produções a curtíssimo prazo, baseada numa hiperdivulgação e na sua estréia no maior número de salas, está prejudicando a carreira destes. O público vem adotando uma atitude de consumo descartável do cinema que dificulta a permanência de um filme em cartaz. Mas está claro que o cinema de arte continua vivo, e muito, com uma produção numerosa.

Assim como o cinemão, uma das novidades está no uso crescente da tecnologia digital, porém com objetivos diversos. Seja por razões estéticas, como no último filme de Godard, ou por motivos econômicos. Muitos cineastas vêm encontrando na câmera digital a solução para baratear os custos de produção de um filme. Documentários para a grande tela, porém também filmes de ficção. Muitos estreantes conseguem desta forma realizar o primeiro longa, economizando drasticamente em termos de equipe e de material. Até grandes nomes vêm empregando esta técnica. É o caso de Techiné com o filme Relações Distantes, inteiramente rodado em digital; o que lhe permitiu dirigir atores desconhecidos num filme low-budget. Outro grande nome é Rohmer que utiliza-se das facilidades da tecnologia digital para ambientar os personagens de A Inglesa e o Duque em cenários baseados em pinturas de Paris na época da revolução francesa.

Estilisticamente, o que venho notando é uma volta a um classicismo formal. Os herdeiros da nouvelle vague tiraram o tripé do armário, e soltaram o carrinho de travelling. A mise-en-scène nesta virada de século é em geral sóbria, discreta, sem invenções ou experiências visuais. Filmes como Harry chegou para ajudar, O caso das irmãs assassinas, Como eu matei meu pai, têm em comum um enquadramento rigoroso, buscando para a câmera o lugar certo, e no seu movimento uma necessidade intrínseca à própria cena. A montagem é clássica, evitando rupturas e descontinuidades a desvendarem o processo fílmico em curso. A tendência é fazer com que o espectador entre no universo apresentado, esquecendo de que se trata de um filme.

Sem excluírem-se totalmente desta tendência, alguns poucos tentam experiências estéticas mais radicais. É o caso de Claire Denis, com Desejo Insaciável e o seu filme precedente, Beau Travail, um trabalho em torno do corpo e do seu percurso no espaço, extremamente visual e onírico, onde a narração vai se dissolvendo para dar lugar à construção estética da imagem e do som. Um pequeno passo em direção a um cinema abstrato? Outro a buscar um caminho estético talvez seja François Ozon, como comprova a sua cinematografia cambiante, feita de experimentações diversas das várias formas dramatúrgicas. De uma forma ainda bastante clássica, Sob a Areia também busca afrouxar os laços da narração, mesclando realidade e lembranças, sem esclarecer a situação para o espectador. Resta que os mais audaciosos ainda pertencem à geração da Nouvelle Vague. Chris. Marker e Jean-Luc Godard seguem experimentando formas e tecnologias. Após produzir quatro deslumbrantes opus em vídeo da sua fascinante História(s) do Cinema, Godard apresenta uma obra complexa, extremamente construída e ao mesmo tempo aparentemente intuitiva, a prolongar suas reflexões sobre a História e o lugar do cinema nela. Melancólico, esteticamente experimental (na mistura de película e vídeo, preto e branco e cor), Éloge de l'Amour é um filme difícil e que resiste ao espectador, mas que imprime nele delicados momentos de puro cinema.

É certamente um momento de perplexidade, para o cinema de arte. Por conta das mudanças na tecnologia e na economia do cinema. O cineasta deixou as questões estéticas em segundo plano, tentando antes de mais nada preservar o seu espaço. Também encontra-se num momento de mudança temática. Os tempos das viagens egóticas parece encerrado, e as críticas puramente sociais parecem estar se esgotando. É característico dos tempos de crise este retorno a valores mais clássicos. Emblemática a busca do pai em vários filmes, assim como a relação ao sexo oposto. Perplexidade e questionamentos que vêm produzindo filmes instigantes e com certeza ainda reservam boas surpresas.

Carim Azeddine,
de Paris