O Cinema dos Cahiers,
de Edgardo Cozarinsky


Le Cinema des Cahiers, França, 2001

É especialmente estimulante para um crítico de cinema assistir a um filme como esse O Cinema dos Cahiers. Não porque o filme se restrinja a esse público-alvo unicamente, mas porque, trabalhando numa revista ou num jornal, diversos pontos em questão são recorrentes na vida de crítico, certas escolhas, certas metodologias, certos embates teóricos. E é claro que observá-los numa tela, e observá-los sendo especificamente os embates de uma revista como os Cahiers du Cinéma ("a" revista de cinema, no sentido em que foi a única que de fato transformou a face do cinema), é de uma natureza diferente para alguém que trabalha teoricamente com o cinema, diferente da experiência que tem do filme um espectador comum (coisa que o crítico, afinal, também é).

Não poderíamos, então, deixar de festejar a exibição de cada momento, a música que evoca ao mesmo tempo uma paixão forte e um passado a rememorar ("Que reste-t-il de nos amours", de Charles Trenet, retomada inclusive por João GIlberto), os depoimentos que remontam a história atribulada e um pouco heróica de muitos homens (e algumas poucas, mas importantes, mulheres) que mudaram o panorama crítico mundial e, certas vezses, mudaram inclusive o modo de fazer cinema.

O Cinema dos Cahiers é um filme em homenagem a um cinqüentenário. Como tal, não poderia deixar de ser um filme de apologia, uma história que não pode ir tão fundo, um distanciamento programático apenas necessário à construção de um relato. Logo, o relato apresentado acompanha as diversas fases da revista, passando pelo nascimento com André Bazin e Jacques Doniol-Valcroze, pelo gosto pelo cinema de Hollywood, pela política dos autores, pela nouvelle vague, instaurada pelos críticos dos Cahiers, pelo elogio do cinema moderno, pelo engajamento em prol de Henri Langlois, pelo militantismo após Maio de 68, pela "política sem cinema" de meados dos anos 70, e pela contínua reabertura aos cinemas do mundo nos anos 80 e 90. Apoiado pela biografia em dois volumes escrita por Antoine de Baecque e pela ajuda na pesquisa de Thierry Jousse, dois redatores da revista, Cozarinsky optou por não tentar alçar qualquer vôo além da historiografia que já estava feita. Recolheu apenas os depoimentos de vários dos redatores e ex-redatores dos Cahiers e ordenou-os de forma que seus agentes pudessem contar eles mesmos tudo pelo que a revista passou.

Assim, vemos Jean Douchet, Jean Narboni, Serge Daney, Jacques Rivette, Charles Tesson, Jean-André Fieschi, Bernard Eisenschitz, entre outros – acrescidos dos depoimentos de três cineastas, Bernardo Bertolucci, Arnaud Despleschin e Youssef Chahine –, comentando seus períodos na revista, suas predileções e seus adversários. Do lado "negro" dos debates, o filme – como aliás o livro de De Baecque – só não perdoa o golpe dado por Jean-Louis Commolli e Jean Narboni no final dos anos 60, instaurando o período militante, abandonando progressivamente o cinema e fugindo do espírito de André Bazin que sempre foi o pai inspirador dos Cahiers.

Comovente por mostrar a prova viva de uma revista que significou tantas modificações na forma de ver cinema e na forma de se apropriar da linguagem escrita para falar de filmes, O Cinema dos Cahiers sabe ser fiel – e isso é o mais importante no filme – ao espírito dos Cahiers du Cinéma: é antes de tudo um filme de crença, de confiança na força da verve critica e da polêmica bem conduzida, na devoção pela imagem desde que impura e pelos autores de predileção. Essa história, que passa por tantos diretores e tantos países, também é nossa. Numa das cenas, Deus e o Diabo na Terra do Sol aparece como o ícone do período "cinemas novos" dos Cahiers. Assim como Rocha foi importante para os Cahiers, essa revista continua sendo referência para toda crítica que se quer séria. O Cinema dos Cahiers dá uma pequena mostra do porquê.

Ruy Gardnier