O Teste Decisivo,
de Takashi Miike


Odishon, Japão, 1999

Muitas sessões deste Festival do Rio foram surpreendentes e inusitadas. Mais de uma pessoa saiu correndo por conta das cenas de canibalismo, por exemplo, da sessão que assisti de Desejo Insaciável, filme que comprova a excelente fase da diretora francesa Claire Denis. Segundo Kleber Mendonça, o mesmo aconteceu em sessões de O Pornógrafo, que revela um excelente cineasta, Bertrand Bonello, por causa de cenas que contêm sexo explícito.

Curioso que o público do festival tenha se chocado com dois filmes que não pedem este tipo de reação. São calculados para incomodar até certo ponto mas o choque que causaram se deve muito mais aos hábitos de uma platéia acostumada com afagos na cabeça. A descoberta deixou de ser (ou nunca foi) uma satisfação para muitas dessas pessoas, que perdem um dos maiores prazeres de um festival como esse que é deixar-se surpreender.

Penso o mesmo de boa parte dos que estavam presentes na sessão que exibiu O Teste Decisivo, um dos dois filmes de Miike Takashi que foram apresentados esse ano (o outro é A Cidade das Almas Perdidas). Não posso culpar ninguém por não ter estômago para assistir a cenas brutais de tortura explícita, ainda que apresentadas com um certo humor (negro, é claro), mas está além de minha compreensão como as reações a estas cenas podem diferir tão radicalmente daquelas apresentadas em relação a qualquer filme de ação hollywoodiano, com suas doses homeopáticas de tortura psicológica e violência gráfica banais.

Audition conta a história de Aoyama, um viúvo celibatário que se esforça para arrumar uma esposa depois de ouvir um conselho do filho adolescente. Um amigo lhe faz uma proposta para que arranjem uma audição de atrizes para um filme e que dentre as candidatas nosso herói escolha uma para noiva. Ele escolhe uma, de fato, leva-a para uma viagem, e depois de uma noite de amor ela desaparece sem deixar vestígios. A busca obsessiva de Aoyama pela garota vai terminar por deixá-lo numa situação muito desagradável.

O filme começa como um melodrama no leito de morte da esposa. Saltamos sete anos e somos convidados a simpatizar com o protagonista, tomando parte em uma leve comédia de costumes à maneira de Ozu, quando o viúvo topa participar da idéia maluca do amigo. Daí evolui pouco a pouco para um filme de horror.

Na superfície é o que parece: um exercício de gênero. Mas no fundo é muito mais que isso. Quando Miike pede a cumplicidade do espectador para o festival de canalhice masculina que é apresentado em tom discreto, ele está, na realidade, lançando as bases para um delírio de perversão e misoginia, um mergulho no pesadelo sexual masculino mais incômodo e assustador.

Mais do que um conto moralista, Audition amalgama todo um leque de possibilidades de relacionamento homem-mulher sem apontar para nenhuma com bons olhos. Todas são igualmente horríveis e dependem de um equilíbrio de poderes que em última instância é inviável. Que o horror de tudo isto seja representado por violência gráfica ou por diálogos açucarados está aquém do ponto. O choque passa. Resta o desespero.

Fernando Verissimo