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(Atenção:
o abecedário está sendo construído Alemanha, Adenauer. A Alemanha não é apenas o país de Rainer Werner Fassbinder, mas aquilo que está por trás de toda a obra do autor de Lili Marleen. As referências à Comédia Humana de Balzac são sempre lembradas: o universo de personagens que usa Fassbinder, cheios de retornos inesperados, constitui um pequeno macrocosmo que exprime toda a riqueza psicológica da Alemanha durante o século XX, desde o arrivismo de Maria Braun até a ignorância ingênua de Franz Walsch / Biberkopf. Uma coisa, entretanto, dá coesão e unidade aos persoangens: estão todos presos num mundo que não conseguem entender e agem conforme uma lógica que é superior a eles. Ninguém é dono de seu nariz, trata-se de um sombrio teatro de sombras, de uma servil peça de marionetes. O cinema de Fassbinder tenta dar conta do estado geral da Alemanha no pós-guerra, o que significa: "o que fazer com nossa herança nazista?" Adenauer, o primeiro chanceler, tem uma resposta: esqueçam isso, vamos focar no futuro, estamos entrando numa era de milagre econômico. A resposta de Fassbinder é outra: ele não acredita que o esquecimento possa trazer grandes frutos. É essa memória recalcada pelos próprios alemães, pelo poder oficial dos chanceleres que circulam ao fim de O Casamento de Maria Braun que Fassbinder trata de recuperar em cada um de seus filmes. Ele sabe que não foi de uma hora para outra que a Alemanha deixou de ser nazista, e tenta ver de que forma ainda esse mundo do ressentimento da pequena-burguesia ainda trata seus excluídos: ódio aos estrangeiros, aos homossexuais, domínio do senso-comum, cinismo, arrivismo são muitos dos temas que passam pelos filmes de Fassbinder. Um mote geral: como um desejo muito forte acaba sendo presa de indivíduos ou de uma sociedade inerte, incapaz de suportar alguma coisa semelhante a um desejo. Um mundo onde as pessoas que desejam demais foram sorteadas para serem os palhaços de um circo macabro. Alemanha no pós-guerra. Berlin Alexanderplatz é o romance de Alfred Döblin, e o livro que modificou profundamente a vida de Rainer Werner Fassbinder. Situado no período de entre-guerras da Alemanha, o romance relata o ambiente de dilapidação existencial através do caminho de Franz Biberkopf, um jovem ingênuo e de bom coração que promete nada fazer de errado em toda sua vida depois de cumprir alguns anos de cadeia pelo assassinato de sua mulher num ataque de cólera. Bruto e não muito esperto, confiando sempre demais em seus amigos sobretudo em Reinhold, um escroque recalcado e gago por quem Franz tem uma estranha atração que, todavia, sempre o abandonam e o deixam em péssimas situações, uma após outra. Numa ação de contrabando, Reinhold empurra Franz para fora de um carro, o que acaba ocasionando a perda do braço direito do embrutecido herói do romance. Essa figura simplória, de bom coração, com ataques mometâneos de fúria, mutilada, incapaz de produzir alguma subjetividade tanto pelo ambiente que o circunda quanto por seu braço que falta, é o mote geral da obra de Fassbinder. A relação dos amores, dos fluxos de emoção também encontram ressonância total com os outros filmes de Fassbinder: Reinhold é incapaz de olhar para a cara de qualquer mulher com a qual já fez sexo. Franz não consegue deixar para trás nenhuma dessas mulheres, fazendo-se aos poucos protetor de cada uma. Mieze prostitui-se para sustentar a família que monta com Franz; seu amor atinge níveis de devoção, abnegação total que vai lhe custar morte. Mas a relação mais estranha é sem dúvida a desenvolvida entre Reinhold e Franz. Motor da série inteira (13 episódios de setenta minutos mais um epílogo de duas horas), essa relação assemelha-se embora seja muito mais sutil com os principais relatos histéricos de seus outros filmes (O Direito do Mais Forte, Martha, Eu Só Quero Que Vocês Me Amem). Fassbinder encarna Biberkopf e faz de Berlin Alexanderplatz um filme com estética "naif", onde a luminosidade explode sempre em formato estrelado, dando a curiosa impressão de que estamos ao mesmo tempo num mundo de sonhos é de longe a mise-en-scène mais irrealista de Fassbinder, se excetuarmos Querelle e numa fábula para crianças, onde toda maldade parece ausente (embora ela não deixe jamais de assombrar os personagens principais). Colapso, câmera, crise, contemplação. Não tenhamos dúvida: o grande tema dos filmes de Fassbinder é o colapso. Colapso individual de todos os protagonistas, colapso coletivo de todos os relacionamentos, colapso de toda a Alemanha do pós-guerra que se une para esquecer. Não é gratuito que vários de seus personagens chamem-se Franz Biberkopf (ver F): estamos lidando com personagens que antes de tudo padecem, que frustram um a um todos os seus projetos por sonhar demais, desejar demais. O Direito do Mais Forte acompanha um Franz jovem e bruto através da dilapidação progressiva do dinheiro ganho numa loteria em proveito de um amor não-correspondido. Eu Quero Apenas Que Vocês Me Amem prospecta o passado e revela uma falha fundamental na constituição de um personagem que o impede de levar uma boa vida. Geralmente a câmera não se presta a elucubrações psicológicas: ela só posiciona-se placidamente para presenciar o colapso dos personagens. Mas em duas ocasiões, é a câmera que revela o momento de crise: em Martha, o encontro que causará o padecimento eterno da protagonista é filmado com um vertiginoso movimento lateral de 360º, onde os personagens também rodam junto com a câmera, quebrando o sentimento de ilusão do cinema e confundindo o espectador. Em Roleta Chinesa, esse movimento se repete, mais elaborado, declarando não mais um encontro fatal, mas associado aos espelhos e deformadores de imagens que Fassbinder utiliza em praticamente todos os seus 41 filmes o fracasso completo de uma família. No cômputo geral, entretanto, a câmera em Fassbinder deve estar permanentemente contemplativa para que seja impossível que o espectador esteja. Douglas Sirk é o cineasta que exerce maior influência em Fassbinder. Espelhos Franz Biberkopf é o herói do romance de Alfred Döblin, Berlin Alexanderplatz. Mas Franz não é apenas isso: é o duplo literário de Fassbinder, que encarna todas as suas paixões e padecimentos (reunidos em uma só palavra no grego = pathos). É de se pensar se em cada personagem principal de seus filmes não haja escondido (ou patente) um Biberkopf. A confusão é tanto maior quando deliberadamente vários personagens de seus filmes, mesmo absolutamente sem relação com o Franz do livro de Döblin, chamam-se Franz Biberkopf: O Direito do Mais Forte, O Amor É Mais Frio Que a Morte, Os Deuses da Peste... No original, Franz é um jovem mutilado, ingênuo e bruto que mantém uma estranha relação de dependência com um escroque chamado Reinhold, que faz de tudo para que a vida de Franz seja um inferno (sem motivo aparente, ele parece não conseguir ver a felicidade de Franz e fará tudo para destruí-la). Os filmes de Fassbinder perseguem mais uma função-Biberkopf (que é também a função-Fassbinder): um sujeito sempre incompleto, transbordante de desejo mais incapaz de saber colocá-lo em sentido exato, resvalando sempre para uma adoração que pode acabar com a sua vida. Mas aquilo que antes de tudo ressalta na personagem Biberkopf é sua capacidade de amar, derivada de sua ingenuidade. Mesmo que sempre meta os pés pelas mãos, é sempre por um ato sem maldade que Franz aos poucos vai se autodestruindo e destruindo os outros à sua volta. Franz Biberkopf denuncia o fracasso de Prometeu, da mente acima do corpo no país que já se quis Espírito Absoluto, guardador do Ser. Fassbinder é, ao contrário, a constatação daquilo que a Alemanha sempre tentou recalcar: a vitória de Epimeteu. Grupo Hanna Schygulla, Harry Baer Ingrid Caven Jogos sociais Küsters, Mamãe Luz, luminosidade Margit Carstensen, Martha Nouvelle Vague Opacidade é um procedimento presente em todos os filmes de Fassbinder. Opacidade da imagem, primeiramente: espelhos, vidros, paredes e móveis que impedem que vejamos da cena tudo que ela nos poderia oferecer... Mas há uma opacidade mais profunda em seus filmes, algo de opaco na própria personalidade de seus personagens, que jamais os restringe a uma psicologia óbvia, e obriga o espectador a uma atenção constante, destruindo as tentativas de capturar cada intriga dentro de um clichê comum ao cinema. Sempre que um diretor recorre à opacidade no cinema, ele tem uma razão para isso: fugir da verdade fácil, do consenso feliz, do tácito assentimento entre diretor e espectador de que "ninguém vai se machucar" tão caro ao cinema de entretenimento. Há uma opacidade própria do cinema moderno e uma outra própria ao cinema barroco. Uma tenta distanciar envaziando aquilo que está na tela, a outra tenta entupir de conteúdos a tela, impedindo que o olho tenha uma "navegação fácil" diante daquilo que ele vê. Como Godard, Fassbinder faz uso das duas técnicas, ora distanciamento e frieza, ora excesso e calor. Peer Raben Querelle Roleta Chinesa Sujeito-suposto-saber, Sexualidade Terceira Geração U Veronika Voss Welt als Wille und Vörstellung é a senha do grupo de terroristas em A Terceira Geração. Mas O Mundo Como Vontade e Representação, a tradução, é uma tese de filosofia de Arthur Schopenhauer, e Fassbinder considera como seu segundo livro preferido (o primeiro é Van Gogh, o suicidado da sociedade, de Artaud). Em A Terceira Geração, alguns pedaços do livro de Schopenhauer são citados. Schopenhauer é o filósofo da Vontade, do mundo como irracional, do querer-viver como único princípio vital, e como a fonte de todas as dores do universo, que são insuperáveis a não ser pela arte, pela piedade e pelo ascetismo. Piedade e ascetismo estão certamente fora da obra e vida de Fassbinder, povoada de excessos, mas uma frase de 1980, respondida a alunos da escola primária num questionário, poderia ter saído da boca do filósofo: "Não existem acontecimentos reais. O verdadeiro é o que vem da arte." A Vontade como princípio motor único e irredutível à razão, e a sociedade e a vida moral como a tentativa de acabar com a vontace, são temas que encontram profunda ressonância na obra inteira de Fassbinder. Xaverl Bolwieser é o personagem ícone de Kurt Raab, ator extremamente importante na vida pessoal de Fassbinder, mesmo depois de morto o diretor. Tendo escrito uma biografia recheada de escândalos e não sem muito recalque , Raab se aproxima muito daquilo que são seus personagens nos filmes de Fassbinder: um pequeno burguês, com todos os seus desejos recalcados, que leva até o fim seu respeito aos valores constituídos. Essa falta de desejo próprio e esse respeitoso mundo dos valores constituídos estamos no mundo kantiano, do respeito à Lei seja ela qual seja levam seu personagem ao colapso. Em Por Que Deu a Louca no Sr. K.?, ele é um funcionário de um escritório de arquitetura, com um filho e uma mulher. Vivem vida de autômatos, uma vida regrada (é de se observar como qualquer instituição regrada em Fassbinder é sinônimo de morte ou colapso). Até a embriaguez do Sr. K o leva a elogiar desmesuradamente (e para constrangimento de toda a mesa) todos os seus companheiros de trabalho, agindo como um bajulador barato. Ao fim do filme, incapaz de mais nada, ele mata esposa, filho, vizinha, e vai no dia seguinte ao trabalho, trabalhando como se nada houvesse ocorrido. Quando a polícia chega no escritório, escontra-o no banheiro, enforcado. Em Bolwieser A Mulher do Chefe da Estação, ele interpreta um pacato trabalhador que é incapaz de reconhecer para si mesmo que está sendo traído pela esposa e recebe a chacota de seus companheiros de trabalho como inveja. No fundo, Bolwieser importa-se mais com sua reputação na sociedade do que com o amor de sua mulher. A proeza de Fassbinder é de despir todo o drama de passionalidade. Quando Bolwieser comete perjúrio um crime que vai custar-lhe a reputação que tento preza , será não como um gesto de amor, mas de egoísmo: ele responde por sua esposa, por aquela que ele tem do lado. Não é à toa que Claude Chabrol é um dos cineastas preferidos de Fassbinder: os dois têm um ódio profundo da normalização das regras e da Lei a que se submetem sem questionamento os "pacatos cidadãos pequeno-burgueses". Ambos os diretores dedicaram filmes em que os protagonistas eram pequenos-burgueses em processo de loucura. Diagonóstico? Normalidade excessiva. Yasujiro Ozu não é nunca referido a Fassbinder nem ele se refere ao diretor japonês. Então por que haveria Ozu de estar num abecedário Fassbinder? Há nos dois uma profunda semelhança em ao menos dois aspectos: centrar o foco narrativo em relações de poder, centrar o foco da câmera em interiores de uma geometria difícil, que erige problemas impossíveis de serem resolvidos. É claro que em outros planos a cor, a psicologia dos personagens não há cineastas mais díspares. Mas há de se observar uma predileção nos dois por filmar dentro de casas as quatro paredes facilitam no desenvolvimento dos problemas de relação , uma predileção por filmar corredores, paredes que barram parte da tela, ao mesmo tempo que uma composição de plano complicada (Ozu foi mais de uma vez comparado a Mondrian por seu geometrismo sem linha de fuga). O olho do espectador não consegue se dirigir a algum lugar específico em Fassbinder, ele fica preso num turbilhão de pistas falsas, de linhas retas, verticais e horizontais, que não vão dar em lugar nenhum. Ao mesmo tempo, os personagens de Ozu estão sempre à beira de uma decisão, valem menos como uma psicologia constituída, insular, do que como uma psicologia à deriva, sempre necessitada de um outro para construir algum tipo de relação. O centro narrativo de Fassbinder e Ozu não é um personagem, por mais que os títulos dos filmes dos dois (Filho Único, Eu Nasci, Mas..., Mamãe Kusters, Maria Braun...) insistam em personalizar. O motivo profundo dos filmes dos dois são os devires, os afetos, aquilo que não está jamais contido definitivamente em um personagem, mas naquilo que está entre o personagem e o mundo. Zeitgeist significa "o espírito do tempo", e esse conceito desempenha um papel significativo no Idealismo Alemão. Com ele tenta-se capturar o sentido imanente de uma vida em um dado momento, fazer da razão o palco ideal de todas as circunvoluções do mundo, uma aposta no positivismo da ciência e do cérebro, uma esperança no homem e na Alemanha. Ora, a relação de Fassbinder com o Zeitgeist (e com grande parte da herança idealista, de Hegel a Heidegger) é dupla: ele ora capta algo do que seria o "espírito do tempo" do pós-guerra alemão, de uma reconstrução difícil, impossível até, ele ora posiciona-se absolutamente contra toda a tradição idealista. Não é à toa seu apreço para com Schopenhauer, o lado negro da tradição alemã. Em um de seus filmes, alguém menciona uma palavra e sua raiz grega. "Não temos nada a ver com a Grécia", responde o outro personagem. Ora, para um país que desde o século XVIII persegue um ideal grego, essa frase tem um significado decisivo: não estamos mais no mundo eufemista, omisso e redundante do Ser apud Heidegger, mas num mundo onde a filosofia e a arte não só não fizeram nada como se aliaram a um projeto tecnico, racional de autodestruição e destruição do outro jamais vistos. O nazismo é um projeto estético-filosófico. Enquanto a Alemanha do pós-guerra tenta esquecer, Fassbinder faz questão de lembrar e relembrar. Ruy Gardnier |
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