Viagem
ao Fim do Mundo (1967)

Tesouro da juventude

Karin Rodrigues em Viagem ao Fim do Mundo de Fernando
Coni Campos
No começo de Viagem ao Fim do Mundo
toca "Alegria, Alegria", de Caetano Veloso. Como tocam diversas das
músicas do primeiro disco solo de Caetano. Mas a música
que melhor definiria o que é esse filme de Fernando Coni Campos
seria "Baby", presente em Tropicália. Ou, ao menos, os versos
"Você precisa saber da piscina/da Carolina/da margarina/da gasolina",
porque o anseio da obra é semelhante: uma espécie de engajamento
no mundo moderno e uma tentativa de explicação dele, de
tudo o que há de novo & delirante & excitante no período:
a supermodelo de comerciais, os mitos da publicidade, a nova música,
sexualidade, literatura, filosofia, cultura pop...
Tudo começa num vôo. O filme
tem um protagonista, mas é fragmentado em torno de todas as experiências
e da psicologia de cada uma das pessoas que povoam o avião. Assim,
um quarentão recalcado como o interpretado por Jofre Soares pode
imaginar que consegue agarrar a menina linda que senta a sua frente, que
pode desnudar com os olhos as moças e senhoras do vôo...
Assim, uma das cenas mais belas do filme e de todo o cinema do período,
em que Fabio Porchat, o protagonista, lê Memórias Póstumas
de Brás Cubas e se imagina dentro do famoso sonho em que Brás
Cubas é guiado por um hipopótamo que o leva ao começo
dos tempos. A cena é filmada com uma liberdade própria aos
sonhos (e ao relato de sonho narrado com ironia por Machado de Assis),
e consegue resultados surpreendentes.
Só que em Viagem ao Fim do Mundo
tudo muda: não se trata do começo dos tempos mas de
um "resumo dos tempos", ou um resumo da nova época. E, assim como
em "Baby", há um sorvete na lanchonete, há aquela canção
do Roberto, o inglês e o que eu não sei mais... É
impressionante como, a partir dos personagens de um vôo, Coni Campos
dá-se a liberdade de sair da imaginação dos personagens
para realizar uma espécie de "Tesouro da Juventude" – os livros
em forma de "primeiros passos" para os jovens, a figura do "tudo
que um adolescente deve saber para tornar-se adulto" –, só
que contracultural. Os anseios todos da juventude e dos novos tempos acham
lugar. O protagonista consegue arrancar beijos da supermodelo. O filme
termina em tom menor, com a chegada do vôo e a ida para casa dos
personagens. A modelo, o filme nos permite vê-la até mais
tarde, quando volta para o marido e para a infelicidade controlada dos
dois. Ou isso é só imaginação do protagonista.
Quem sabe?
Sabe-se apenas que Viagem ao Fim do Mundo,
realizado em tempos de ebulição cultural, é fiel
ao momento em que foi feito, e é uma das obras mais instigantes
e inteligentes realizadas no período. E, assim como o disco de
Caetano tão tocado no filme, tenta refletir um mundo em que a Lua
não é mais aquilo que está no céu, mas uma
lua cultural, a "Lua oval da Esso" ("Paisagem Útil"),
e a beleza não provém mais da natureza, mas da construção
humana. Tentar compreender as construções do homem de seu
tempo, esse parece ser o desejo íntimo do filme de Fernando Coni
Campos.
Ruy Gardnier
|
|