The
Nest: uma vida em dez minutos

No meio da maratona do Anima Mundi, é
mole se assistir a mais de 100 filmes de curta metragem em menos de 10
dias. Isso é fácil. Difícil mesmo é que um
destes curtas siga martelando a cabeça de quem assiste, dias depois
da sessão. Não apenas por uma falta de interesse da produção
em geral, de forma alguma. Mas, principalmente, pelo fato da extrema quantidade
de filmes em exibição, o que geralmente torna estas maratonas
em cansativas correrias que parecem impedir que um filme isoladamente
tenha tal efeito. Pois bem, isso tudo só aumenta o valor que se
dá a um filme como este The Nest. Trata-se de uma animação
irlandesa de 10 minutos, numa singela e nem um pouco modernosa computação
gráfica, dirigida por Owen Fitzpatrick.
Seu maior trunfo talvez seja, aliás,
sua técnica. Mas não por uma exibição de destreza
manual ou nada assim, como assola tantos outros desenhos. Principalmente
pela capacidade que ela dá ao filme de surpreender o espectador.
Na animação existe uma regra muda, e pouco comentada, segundo
a qual o visual de um filme permite, por si só, que se leia toda
a significação que ele possui. Isso mesmo nas obras mais
interessantes. O que se quer dizer com isso? Que todo filme que for tentar
discutir assuntos mais graves, mais reflexivos, possui tons escuros, climas
e atmosferas, traços estranhos, bonecos de massinha soturnos. Ou
seja, eles parecem gritar: este filme é sério! Pelo outro
lado, os filmes mais engraçados trazem o traço leve, muitas
vezes bonito, muitas vezes cômico, e anunciam a sua graça
de antemão. Há ainda os exemplos de ironia, como os ótimos
filmes de Don Hertzfeldt, ou pensando na TV, os exemplos dos Simpsons
e do South Park. Ali também a técnica, anárquica
e desleixada, deixa antever o efeito buscado.
The Nest vai contra isso tudo. Pois
traz uma técnica não só bela, mas quase ingênua,
que mergulha o espectador no "clima" da comédia, mas não
só: na comédia mais leve, mais inofensiva. Mais ainda: tem
um bebê em cena. Bebês são a mais óbvia representação
de inocência, de pureza, de graça. O filme começa
com isso: um bebê, num carrinho, na praia de frente para o mar.
Ele emite os sons típicos de bebês, aumentando os gritinhos
de "ooohhh" e "aaahhh" da platéia. Que gracinha! O rádio
está ligado ao lado dele, embora não se entenda muito bem,
se descreve uma notícia banal. Toca uma musiquinha. O espectador
começa a esperar o próximo passo: que ato engraçadinho
fará este bebê? Em que cômica intriga se envolverá?
Alguns fades voltam sempre para a mesma cena:
o bebê parado. Ele olha em volta, maravilhado: o mar, as gaivotas,
o vento, a areia. Que bonitinho. Cinco minutos se passam, e mais nada
acontece. O cineasta "filma" o bebê num incômodo plano fixo
a meia distância, mostra o mar de vez em quando, o sol, volta num
eventual close, mas retorna sempre a seu plano mais geral, e o bebê
lá, parado.
O espectador começa a se inquietar.
De onde veio este bebê? Com esforço lembramos que o primeiro
som do filme, ainda com a tela preta era o de um carro arrancando... Será
que os pais deixaram a criança na praia? Ah, mas então eles
já voltam...
A necessidade de estabelecimento de uma narrativa
começa a ficar incômoda. Precisamos de um passado que justifique
esta criança aqui, parada. Mas, principalmente, precisamos de um
futuro, de uma ação. Impossível não pensar
em "Esperando Godot". Aguardamos a ação redentora, a que
dará sentido a tudo. E ela não vem. Só o bebê,
o mar (e seu som sedutor começa a ficar irritante), as gaivotas.
O sol. Ele continua emitindo seus sons pré-fala. Ele cochila, cai
no sono. Fade. Ele acorda. No mesmo lugar, o bebê, a praia, nada
acontece. Mais fades, e nada.
Anoitece. E o bebê lá. E as
imagens continuam sendo belas, continuam sendo graciosas, mas o público
já não se engana: o filme tem algo de estranho. Dividido
entre o incômodo da impaciência pela não-ação,
ou rindo disso mesmo. Mas nada ainda indica outra coisa que não
a comédia, mesmo que já pela ironia. Fade.
Amanhece. Plano geral, o mesmo. Lá
está o bebê no mesmo lugar, só que gaivotas tomam
todo o berço, bicam o menino já morto, comem os seus restos.
Assim, de repente. "The end", assim de repente. É só. Alguns
risos, aplausos esparsos, muita estranheza.
E eu, dias depois, não tiro aquele
bebê da cabeça, veja o que quer que eu veja no festival.
Pode ser sim uma metáfora da existência humana, da passagem
pela Terra. Pode ser muita coisa, aliás, para cada espectador.
Mas, acima de tudo, quantos mais filmes eu vejo na mostra, não
me sai da cabeça a inteligência de um diretor em lidar com
a expectativa da platéia, em fazer do cinema acima de tudo um jogo
entre tela e espectador, onde o cineasta detém os fios que movem
o marionete em suas mãos, e pode com ele fazer o que bem entender.
E, quando ele entende bem, pode fazer do espectador o seu brinquedo, muito
mais que o seu próprio filme. O resultado é um filme admirável,
não menos do que isso. Vale e justifica um festival.
Eduardo Valente
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