Um Tempo para Viver, um Tempo para Morrer, 1985



Um Tempo para VIver, um Tempo para Morrer de Hou Hsiao-hsien

"É muito fundo o poço do passado;
não deveríamos dizer antes que é sem fundo esse poço?"

Thomas Mann

Um tempo para viver, um tempo para morrer conta a história da família de A-ha – Hou Hsiao-hsien – que, tendo saído da China Popular para ir viver temporariamente em Taiwan, acaba por se fixar ali. O filme abrange o período de tempo que vai desde a mudança do pai, o primeiro a ir, até a morte do último dos membros adultos da família, a avó de A-ha, ou ainda, o período que vai desde a pequena infância do menino até a sua adolescência.

O título do filme é primoroso, tanto em sua versão inglesa como na chinesa; se na primeira temos o belíssimo Um tempo para viver, um tempo para morrer, em chinês, Tong Nian Wang Shi diz: meus anos de infância. Isto é, numa possível amálgama dos dois: trata-se da infância do diretor, lugar no qual há um tempo que é de vida e um que é da morte. Para o menino, o tempo é de aprender a viver, mas isso não exclui o contato com a morte; é preciso sabê-la. Para seus familiares – pois que passamos por três mortes no percurso do filme, a de seu pai, a de sua mãe, e finalmente, a de sua avó – se dá o contrário: se o tempo é de aprender a morrer no seu caso, isso também não vai excluir jamais a vida plena que está lá ao seu redor, em seus filhos e netos. É, pois, o movimento próprio da existência: para que se viva, há de se morrer.

A-ha é só uma criança quando se muda para Taiwan, porque seu pai encontrou trabalho e decide que toda a família há de se mudar para lá. E é a partir das memórias dessa criança que se constrói a narrativa do filme; Hou disse: "Um tempo para viver, um tempo para morrer se inspira inteiramente em minhas memórias, ele [o filme] mostra como as coisas nos aparecem através da memória, a maneira pela qual certas atmosferas, certos detalhes do passado adquirem, com o tempo, uma grande importância". Que não se procure, pois, nenhum incrível trabalho de recriação da época ou qualquer coisa do tipo. Nunca foi essa a intenção de Hou. Não é esse o movimento em que se baseia a sua obra, da vida para o filme; em entrevista, disse: "... não é a vida que está a serviço do filme, mas o filme a serviço da vida. Não há para mim realidade fora do filme". O que se passa neste filme de que falamos está nesse âmbito: é o retrato de um passado, de uma infância que não só não se conecta diretamente com um certo sentido de História, mas cuja grande conexão, aquela com a memória, forma a única realidade possível.

É mesmo a pequena vida de A-ha, ali no centro, que faz aparecer a de toda a família e mais, a do próprio lugar onde se passam os acontecimentos. Se o menino que se revolta com a morte do pai acaba por enveredar por caminhos de desonestidade, isso não é algo singular, mas destino quase comum para os meninos daquele ambiente. Muitos dos amigos de Hou, como ele revelou em entrevista - é impossível não relacionar essas memórias escolhidas para a feitura de Um tempo para viver, um tempo para morrer com aquelas do próprio diretor - acabaram mortos por causa de atividades ilegais.

A vida na grande família formada por seu pai, sua mãe, a avó e mais três irmãos é mostrada não em um sentido de totalidade, mas em pequenos pedaços, em excertos do cotidiano; é a sova que o menino leva da mãe por ter lhe pego dinheiro da bolsa sem autorização, são as manias de sua idosa avó, as pequenas reuniões noturnas em que se contam episódios de suas vidas e lendas sobre mortos, isto é, não é nunca um sentido totalizante o que se propõe, mas a criação dessas atmosferas, desses "detalhes do passado". E, dentro disso, é possível dizer que Um tempo para viver, um tempo para morrer é um filme sobre o tempo, sobre o tempo que passa e sobre o tempo do porvir; sobre como apreendemos esse tempo e o que ele é capaz de nos deixar: lembranças.

A morte do pai, que adquire problemas respiratórios devido ao tempo úmido ao qual ele não consegue se acostumar é só o início da série de mortes que acompanham o jovem A-ha até que ele fique sozinho com seus irmãos; é nesse momento que o filme acaba. Entrementes, sua irmã se casa e se muda para longe, sua mãe descobre ter um câncer que acabará por ser fatal, há a descoberta de garotas pelos irmãos, A-ha se mete nos tais negócios injustos, sua avózinha morre. Falando sobre este filme, Hou destacou que para ele há três lembranças essenciais, se bem que dolorosas: a de sua mãe, que, tendo ido se tratar longe, ao voltar e encontrá-lo envolvido em jogatinas e tudo mais, evitava olhá-lo mas que acabou por dizê-lo, pouco antes de morrer: "você tem perdido muito dinheiro"; o olhar que seu irmão lhe lançou no enterro dela, onde, talvez por consciência pesada, ele tenha chorado copiosamente, e que parecia dizer: "você só faz bobagens, jamais se ocupou de sua família e agora, chora"; e enfim, o olhar do homem que veio limpar a avó morta – de tão velha a senhora já não se movia mais e acabou por morrer ali, deitada no tatame, tendo ficado diversos dias na mesma posição – que, virando-a, descobriu que sua pele já estava grudada ao chão, que seu corpo já apodrecia ali, e que significava, segundo Hou: "como pode haver um neto tão irresponsável!". As três estão em Um tempo para viver, um tempo para morrer, a última, dolorosamente bela, fecha a narrativa; a partir dali, um flashback, algo que já apareceu no filme volta, isto é, a lembrança de uma lembrança, a do dia em que A-ha saiu para passear com sua avó – ela tinha a ilusão de que se saísse por aí andando chegaria de volta ao continente – conversando com ela e colhendo goiabas, tendo sido talvez o único de sua família a lhe realizar esse desejo, e que é para o menino mergulhado nesse mar que é o passado um momento de felicidade. Parece que nem a velhinha e nem o resto da família poderiam ter tido uma homenagem mais justa e mais bonita do que essa.

Juliana Fausto