Stereo,
de David Cronenberg (1969)
Paro o carro numa
rua próxima ao Moinho Santo Antonio, espaço que abriga o
Carlton Arts, em São Paulo. A chave sai do contato e é recolhida
por meu umbigo, através do funcionamento de um sistema que foi
cortesia de meu amigo cientista, Dr. Sidônio, para dificultar assaltos.
Ao sair do carro, sou abordado por um homem cuja fala não corresponde
aos movimentos labiais. Ele coloca a mão direita em minha testa
e me transporta diretamente para a entrada da sala de cinema adaptada
que iria exibir Stereo, a primeira maluquice de Cronenberg. Como
já estou no clima dos filmes do diretor canadense, nada me surpreenderá.
Bem...acho que nada...
Nos primeiros minutos
de projeção, já me pergunto se não há
alguma troca de rolos. Não parece um filme de Cronenberg. Os enquadramentos
estranhamente são rigorosos e estáticos, num interessante
trabalho de diagonais. Uma narração em off explica
o necessário para que o espectador não fique perdido. (se
é que isso é possível, já que a trama é,
imagino, de desnortear qualquer um) Voluntários passaram por uma
operação que elimina a capacidade da fala, e agora estão
sujeitos às mais diversas tentativas de chegar ao sexo pela telepatia.
Suas reações são estudadas e narradas para o público,
num brilhante artifício para evitar os problemas de captação
de som direto ou dublagem.
Não deixa de
ser uma profética analogia ao sexo virtual que hoje já se
insinua pela internet. Lembremos de como Woody Allen trata do assunto
em O Dorminhoco; há uma cabine onde as pessoas entram e,
telepaticamente, transam. É interessante como Cronenberg trata
dessa obsessão da forma mais científica possível,
ao contrário do diretor de Manhattan. Os personagens, além
da fala, perderam todos os sentimentos que não sejam propulsores
do sexo. Mesmo que depois, no filme, perceba-se uma forte tendência
depressiva nesses voluntários. É como se o diretor quisesse
dizer que o sexo estimulado cientificamente perde seu potencial terapêutico.
Num esquema faz-tudo,
Cronenberg apura seu senso cinematográfico, o que lhe daria experiência
para, no futuro, ter controle absoluto de seus filmes, tendo principalmente
direito ao corte final, tão sonhado por qualquer diretor que se
preze. É impressionante seu domínio de câmera, sua
sensibilidade para o ângulo certo, sua noção de quanto
deve durar um plano. Em suma, Cronenberg, já no seu primeiro filme,
revela maestria na decupagem. O interessante é que ele, ao expandir
seu discurso, ao sair dos domínios da vanguarda, iria depois perder
o rigor formal, pelo menos em alguns filmes, ao mesmo tempo em que adquiria
maior universalidade de conteúdo. Não que Stereo seja
datado, ou que seus filmes posteriores sejam descuidados demais na forma.
Embora não seja difícil notar que a fotografia de sua trilogia
de terror (Calafrios, Rabid e The Brood) seja bem
relaxada, seu lado Corman de terror B permite e até tira proveito
(no caso de The Brood) do desleixo. Stereo se dirige a um
público mais específico, o público de festivais,
enquanto seu filmes pós 1974, os quais se dirigem a um público
bem mais amplo, não revelam aquele apuro formal do começo.
Se Cronenberg é considerado pelos detratores apenas um esteta,
o que é um equívoco, isso se deve principalmente a Stereo
e, por conseqüência, ao seu aprimoramento, o ainda mais
bizarro Crimes of the Future. E ainda que seja quase unânime
a preferência dos críticos pelo segundo, fico com o primeiro,
pelo ineditismo e pela fotografia, que é a mais brilhante de sua
carreira até "A Mosca".
É facil, porém,
considerar Stereo um filme atípico, mesmo que o seguinte,
Crimes of the Future, seja seu irmão. Stereo é
o único com uma preocupação que alguns diriam excessiva
com o enquadramento. A fotografia em preto e branco, outra exclusividade
deste filme, também recebe cuidados especiais, mesmo que para isso
Cronenberg não recorra a um fotógrafo mais experiente, ficando
ele mesmo com essa função. Desde seu segundo filme ele só
trabalharia com cores.
Stereo também
é seu filme mais racional. Ainda que essa racionalidade apareça
em toda sua obra, é neste trabalho que ela acaba por sufocar qualquer
traço de sentimento. O filme foi duramente criticado por esse aspecto
pouco propício à emoção, como se o tema não
pudesse ser trabalhado com a frieza desejada pelo diretor. Pode e foi
muito bem trabalhado. Na já mencionada trilogia de terror, bem
mais aceita pelos críticos imparciais, Cronenberg filtra o lado
racional pelo eterno embate romântico de heroísmo. Temos
um candidato a herói que tenta conter o mal, mas fracassa. O espectador
não percebe o quanto esses filmes têm de racionais porque
se deixa levar pela trama, pelos personagens. Mas está na trilogia
o mesmo interesse pela ciência (razão), a mesma crítica
ao homem na condição de manipulador de sua própria
natureza, o mesmo pessimismo em relação à progressão
da humanidade, temas já presentes em Stereo. Mas se a extrema
frieza é, para alguns, prejudicial ao filme, para mim ela reforça
o caráter científico da experiência. Como se o desconforto
causado por essa frieza fosse a emoção almejada pelo diretor.
Sentimos o excesso de razão e isso nos inquieta. De qualquer forma,
aqui a emoção é, aparentemente, soterrada por esse
excesso. Ouso afirmar que, se Cronenberg ainda não realizou sua
obra-prima definitiva, é porque ainda não soube promover
a junção desejada entre a cientificidade de seus temas e
a emotividade necessária à absorção de suas
tramas. Seus filmes mais bem sucedidos, os que chegam mais perto do sublime,
foram os que quase atingiram o ponto certo dessa junção.
Penso em Gêmeos e Scanners. E se Cronenberg tem uma
obra única, lúcida e extremamente coesa, isso vem de Stereo
e de Crimes of the Future que formam a base para o aprofundamento
que viria a seguir.
Louvemos, então,
esta ótima estréia que, mesmo não sendo seu melhor
filme, possibilitou as maravilhosas inquietudes que temos visto em seu
cinema desde então.
Sérgio Alpendre
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