Por
um cinema de sonhos e, acima de tudo, pesadelos
A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça de Tim
Burton
É interessante como A Lenda do
Cavaleiro sem Cabeça, sendo o projeto menos pessoal de Tim
Burton antes deste Planeta dos Macacos talvez seja justamente o
que sirva para comprovar sua assinatura e seu universo pessoal como cineasta.
Sim, porque é fácil um cineasta que filma apenas roteiros
seus, de acordo com suas indicações, estabelecer uma visão
pessoal do mundo. Os verdadeiros autores são ainda mais reconhecidos
quando, como é o caso aqui, recebem um projeto de um filme com
o roteiro já escrito, e o transformam para ser parte inseparável
de sua obra.
Falar em universo pessoal no cinema de Burton
é altamente adequado porque todos os seus filmes, sem exceção,
parecem se passar em ruas diferentes ou tempos diferentes de um mesmo
grande país. Não país no sentido literal, como nos
filmes dos irmãos Coen (que só podem ser americanos) ou,
radicalizando, de um Glauber Rocha (que só podem ser brasileiros,
mesmo os feitos lá fora). Mas um país, uma terra cujas fronteiras
são construídas por concepções tanto visuais
como temáticas ou narrativas.
O cinema de Burton é primordialmente
um cinema de tudo que vive à sombra do consciente. É um
cinema onírico, sem dúvida, ou mais ainda, um cinema de
pesadelos. Um cinema acima de tudo onde o sonho e o pesadelo não
podem ser facilmente distinguidos. E só se pode ler os seus filmes
a partir disso, porque ele constrói sempre uma ambientação
e uma narrativa que não se apoiam simplesmente nos limites do real,
mas nos recônditos mais escuros do imaginário humano. Burton
é um construtor de mundos, acima de tudo.
Seus filmes possuem uma sensação
de "contos de fada", mas os contos de fada antes deles serem filtrados
pela vovó e a mamãe. Como eles foram criados, histórias
que inspiram encantamento, mas igual horror e medo. Histórias que
lidam com a imaginação humana no que ela possua de mais
próprio, que lide com o que há de mais infantil na consciência
do espectador. Infantil no sentido de puro, de intocado mesmo. Mas não
a pureza ligada à bondade, mas aquela ligada ao primal, ao pré-consciente.
Dentro disso tudo, A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça só
pode ser um filme de Tim Burton, porque é este universo que está
em cada fotograma dele. A história é a mesma de sempre,
de um herói meio estranho, meio incompreendido e cheio de defeitos,
que é mal visto pelos olhos dos que o cercam.
Se consideramos que o trabalho da composição
visual que advém da combinação de fotografia, direção
de arte, figurinos e efeitos, são parte central da obra de Burton,
este filme talvez seja o seu ápice. Embora não possamos
ignorar o trabalho de som, em especial a trilha de Danny Elfman que cria
mais uma vez a ambiência exata para o filme, o trabalho pictórico
de Burton aqui não tem limites, cada plano tem um valor específico,
com um trabalho de luz estupendo sob qualquer aspecto. Com um contraste
absurdo, e um trabalho químico de descolorização,
Burton cria um verdadeiro filme "preto e branco em cores". Onde tudo que
há de mais climático no cinema p/b é misturado com
os jogos antinaturais das cores. Mas, o principal é que não
faz isso apenas pelo "belo", mas acima de tudo porque assim consegue construir
o seu universo de tensão, estranheza, medo, e acima de tudo de
incômodo. Este trabalho visual supra-real é indispensável
para que Burton crie seu universo próprio, seus contos de fada
sem mocinhos. A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça é um
filme escuro como não se via na sua obra desde os Batman,
um filme que joga com luz e sombras como elementos palpáveis, quase
com presença física. São, talvez, os melhores atores
do filme.
E olha que isso é dizer muito, porque
o elenco deste filme é um capítulo à parte. Começando
por Johnny Depp, ator que melhor encarna os anti-heróis de Burton,
passando por alguns outros atores fetiche dele (desde Jeffrey Jones a
Michael Gough, passando por Lisa Marie e participação de
Martin Landau), e chegando a novas aquisições como Christina
Ricci e Miranda Richardson. Especialmente neste filme de trabalho visual
tão apurado, Burton trabalha seus atores mesmo fisicamente (com
perucas, figurinos e cabelos pintados) como se fossem quase bonecos de
cera. Ele reconhece que buscou atores com presença física
única, que remetessem quase ao cinema mudo, no sentido que tivessem
uma participação que dispensasse palavras (e como não
pensar nisso na atuação de um Christopher Walken).
Na verdade, tanto no trabalho de atores,
quanto no visual, Burton neste filme quis remeter a duas fontes básicas:
o cinema de horror, especialmente o inglês dos anos 50 (e em especial
da Hammer); e os contos de fada, ou melhor, os "folk tales" mais exatamente.
É da mistura dos dois que ele quer extrair a sensação
do horror misturado à magia, ao encantamento. Usando ainda, é
claro, do humor que nunca está ausente de seus filmes, e que neste
em especial é uma constante. Desde o sangue vermelhíssimo
e fake, até a interpretação e o texto especialmente
iluminados de Depp, chegando a uma investigação que lembra
muito os desenhos de Scooby Doo, igualmente cômicos e assustadores.
Tudo remete a este universo que ele tanto ama, e que tem muito a ver com
um encantamento infantil pelo desconhecido.
Não por acaso, o filme tem as já
esperadas cenas em que crianças testemunham fatos horríveis
de violência, no caso duas cenas bastante fortes. Uma delas foi
muito criticada na época do lançamento, como excessiva.
Burton argumentou que sempre que ia ver os filmes de suspense e horror
quando criança ficava revoltado de ver que as crianças na
tela eram "protegidas", nunca sofriam o mesmo que os adultos. Ele sentia
nisso que não era considerado um igual, e que guardou esta sensação.
Por isso, faz questão de tratá-las com o devido "respeito"
ao construir seu universo de magia, mas também de horror. Talvez
estas crianças estejam mais preparadas para o mundo real do que
as por demais protegidas. É este o tal universo de Burton: onde
sonhos e pesadelos se interpenetram a cada momento, e que é antes
de tudo cinema no que possa haver de mais específico desta
linguagem.
Eduardo Valente
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