Poeira no Vento, 1987



Poeira no Vento de Hou Hsiao-hsien

Vidas ao Vento

Do fundo da tela negra surge um instante de pedaço de paisagem. A luz nos revela um caminho, um trilho de trem. Montanhas, escuridão, montanhas... O centro que nos leva à periferia, um constante retorno pra casa. As primeiras cenas de Poeira no Vento (Dust in the Wind, de 1986), do diretor chinês Hou Hsiao-hsien, nos remetem a passagens, de um espaço a nós desconhecido, de um tempo não determinado. Ao longo de todo o filme elas estarão presentes: passagens de um estado a outro, de uma qualidade a algo que já não é mais ela. A vida sendo levada. Nenhum ponto a ser alcançado, nenhum momento a ser fixado. A vida como um entre-acontecimentos.

Huen e Wan são dois jovens que moram em algum lugar de Taiwan, um lugar periférico a Taipei, dependente economicamente do grande centro. Uma zona mais rural e pobre que os leva a ir trabalhar e estudar na cidade. Meninos de idade pouco definida, com aparência de crianças, que precisam ajudar no sustento da família, mesmo que para isso, deixem de estudar e vivam longe dela. Ele (Wan), já experiente, arranja a ela (Huen) um emprego na cidade e os dois compartilham seus momentos de passagem. O entre-trabalho, o entre-estudo, o entre-casas... a viajem de volta-ida.

A descritividade de Hou Hsiau-Hsien não estará nas ações, não estará em um roteiro calcado em uma narrativa causal, mas sim no estabelecimento de relações entre seus personagens. As informações não estão à nossa disposição, não estão entregues de imediato, numa lógica na qual não existe apresentação de personagens, onde nem mesmo sabemos ao certo qual é a relação dos personagens principais: ela é o que vemos, não o que queremos entender. Uma lógica na qual não existem nem explicações de suas vidas passadas nem de projeções futuras. Vidas voltadas para o presente, para algo que se tem.

Pessoas que se deixam levar pelo tempo. Um tempo que passa indeterminadamente para nós espectadores. Hou Hsiao-hsien trabalha com uma idéia de tempo Único, onde não existe uma sucessão cronológiga de fatos, não existe uma ordem causal de acontecimentos. Não sabemos quanto tempo se passou desde a primeira imagem. Quanto tempo Huen e Wan estiveram trabalhando, quanto tempo eles estão longe de casa, se aquela é a quinta ou vigésima vez que eles voltam, se só se passou um mês ou um ano desde que Huen foi para Taipei... e isso, de fato, não irá importar. Uma narrativa que não precisa ser totalizante, não precisa abarcar cada instante: pois os entre-acontecimentos estão sempre se repetindo, se refazendo.

Um recrutamento da marinha é algo que vem para trazer novas significações para Wan e Huen, a dificuldade de separação dos dois amigos-namorados (essa relação não é muito esclarecida), a dificuldade de se projetar algo além do presente, para o depois da passagem na marinha. As cartas trocadas como atualização do presente de um e de outro, a troca interrompida por esta atualização não ser mais possível: Huen se casa com o carteiro que traz as cartas de Wan. Pela primeira vez ele tem uma reação violenta, ainda que contida.

Através da narrativa voltada ao casal Huen-Wan, Hou Hsiao-hsien irá colocar de forma central, alguns problemas sociais da Taiwan da década de oitenta. O estudo aparece como algo bem valioso e sonhado para os jovens, praticamente obrigados a trabalhar, para sustentar seus pais e irmãos numerosos. A separação da família. O caminho de Taipei parece ser quase que uma regra para eles, que são muitos. A vida solitária da cidade, as cartas que pedem dinheiro.A exploração e a violência no trabalho, o chefe que maltrata, o vizinho que é espancado pelo patrão com uma barra de ferro. O motivo de Wan ter agüentado muito tempo seu trabalho pesado na gráfica é a possibilidade de poder ler os livros que são impressos. Muda de trabalho pensando em ter mais tempo para estudar. Vai para a marinha por que não passa nos exames da faculdade. Seu pai diz que a falta de acesso à educação é praticamente uma tradição em sua família. A educação como algo que se tenta, mas não consegue. Algo que existe longe do espaço deles. A transição centro-periferia, única opção para se tentar abrandar a miséria; o mundo agrário ligado a crianças e velhos.

Assistir a um filme de Hou Hsiao-hsien é para um espectador brasileiro uma experiência não usual de cinema. Um cinema oriental que escapa de uma tendência ocidentalizante (encontrados em filmes de cineastas como Ang Lee e John Woo). Um cinema que não faz parte da minha lógica e que provavelmente não foi feito para mim e que nem sequer chegou aos nossos cinemas. Qual o sentido de se assistir no Brasil a um filme de diretor chinês, criado em Taiwan?

Hou nos trará um cinema que nos faz pensar numa lógica diferente de tempo, espaço, narrativa, política... Nos faz ficar perdidos, inquietos. Abrem-se possibilidades de um cinema por nós nunca pensado, de um cinema com referenciais não assimilados. Um cinema que tentamos entender, mas que talvez sirva para entendermos nosso próprio cinema.

Marina Meliande