Orgia
ou O Homem Que Deu Cria (1970)


Orgia ou O Homem Que Deu Cria, de João Silvério
Trevisan
Em Pocilga, filme de 1969 dirigido
por Pier Paolo Pasolini, um jovem vaga pelo deserto, lutando contra canibais,
até ser preso e entregue aos chacais. Antes de sua morte, ele repete
uma oração blasfematória: "matei o meu pai,
comi carne humana e tremo de felicidade".
Em outra chave, o parricídio, o canibalismo
e uma desesperada carnavalização estão presentes
no filme que João Silvério Trevisan realizou no ano seguinte,
Orgia, ou o Homem que Deu Cria, que a princípio se chamaria
Foi Assim que Matei Meu Pai. Certamente, o diretor não tinha
como referência o filme de Pasolini, mas é curioso como ambos
refletiram, na mesma época e com metáforas bastante próximas,
a impotência de uma geração paralisada pelo fascismo.
Enquanto Pocilga era uma crítica
contundente aos dóceis filhos de uma sociedade disposta a "imobilizar"
(ou matar) suas próprias crias, condenando-as a um mutismo cretino,
a Orgia de Trevisan já nascia destinada ao silêncio.
No contexto brasileiro de 1970, Orgia defrontava-se com um país
afundado no período mais violento da ditadura militar, atrelada
ao mito da modernização e do milagre econômico. No
plano da cultura, a censura e o esfacelamento total do que restava da
utopia nacional-popular fincavam raízes nos setores ligados às
áreas de maior apelo industrial, como o cinema e a TV. O cinema
novo buscava a reorientação ideológica no diálogo
com o Estado; o cinema dito "marginal", sem manifestos oficiais
convergentes, fragmentava-se em filmes, exílios e invenções.
Como grande parte dos filmes experimentais
lançados àquela época, Orgia contesta tanto
o estrangulamento da liberdade de expressão (repressão do
aparato estatal militarista) quanto a tutela cultural/ideológica
do cinema novo. Há em Orgia, portanto, este duplo movimento
de afirmação de uma nova poética (mais ligada às
lições tropicalistas) e de recusa à postura de intervenção
sociológica na realidade, típica do cinema novo. Nos dois
casos, é o cinema novo o principal interlocutor do filme, e o Brasil,
o seu drama central.
Na verdade, o que preocupa Trevisan não
é tanto o país como idéia abstrata, mas sim a inserção
de toda uma geração numa determinada realidade brasileira.
O desespero - tônica dos filmes marginais - nasce desta busca pela
inserção e pela ação. Recusando a estrutura
existente, admitindo os fracassos e a impossibilidade de agir, resta a
ruptura e a dúvida sobre o que fazer e como agir diante do vazio
e do caos (interno e externo). Orgia é, dentre os filmes
apresentados na mostra Cinema Marginal e Suas Fronteiras, talvez
o que formula o discurso mais claro de oposição ao "paternalismo"
do cinema novo. O que não o impede de utilizar uma estrutura alegórica
semelhante para falar da "sifilização ocidental".
Esta estrutura leva em conta, em primeiro
lugar, a trajetória das personagens do interior rural para o centro
urbano. O cortejo que paulatinamente vai se formando ao longo da narrativa
não só refaz o trajeto ideológico/geográfico
que marcou o cinema novo; há aí, também, o reflexo
do processo de Trevisan como cineasta. Como fantasmas expulsos, as personagens
surgem de modo convulsionado, representação vulcânica
do mal-estar.
Do interior para o exterior, a corrida do
sertão para o mar não se faz épica: é, ao
contrário, coberta de lama e esperma, arrasta-se, capengando e
deixando para trás um rastro de sangue e desinfetante. As personagens
são tortas e, embora formem um conjunto, quase não se comunicam
entre si. Monólogos entremeados por citações ou animalescos
grunhidos marcam grande parte do texto de Orgia. O caipira, o travesti,
o cangaceiro da Volkswagen, as prostitutas, o intelectual suicida, o rei
africano e o anjo negro, o padre e outros tipos do núcleo central,
caricaturizam as bem comportadas "visões de conjunto"
da sociedade brasileira. Embora a vontade de romper os laços com
a tradição e o atraso marque a atitude de Orgia,
este impulso é norteado por um desejo de reencontro com um imaginário
perdido, um imaginário brasileiro "fundador" de um conceito
mais complexo de nação.
Tal reencontro de fato não se dá,
já que o cortejo termina num cemitério; a "cria"
é devorada pelos índios; a máxima "em se plantando
tudo dá" é veementemente negada. E, o que é
mais trágico, mesmo como produto cultural, Orgia tem sua
trajetória igualmente abortada: o filme nunca foi liberado pela
censura, o que frustrou a carreira de João Silvério Trevisan
no longa-metragem.
Luís Alberto Rocha Melo
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