Ed Wood



Johnny Depp em Ed Wood de Tim Burton

"(...) você atinge a santidade pelo excesso de pecado."
(Joaquim Pedro de Andrade, sobre
O Imponderável Bento Contra o Crioulo Voador
)

Ed Wood (1994) é um dos raros filmes americanos a fazer o elogio - irônico - do autor. Tal elogio surge como em Barton Fink, dos irmãos Coen: a tragédia sendo companheira constante do que a princípio parece ser apenas cômico.

No que consiste, porém, a tragédia vivida por Edward D. Wood Jr.? Sabe-se que o realizador do clássico trash Plan 9 From Outer Space terminou sua carreira esquecido, afundado no alcoolismo, sem conseguir levar à frente seus projetos. Morto em 1974, permaneceu conhecido pela inquietante fama de "pior diretor do mundo".

Esta não é, no entanto, a "tragédia" que interessou a Tim Burton contar em Ed Wood. Nesse sentido, ele se limita a dar algumas rápidas informações sobre o destino das personagens (não só de Wood como também dos demais atores e amigos que o acompanharam) naquele clássico modelo dos letreiros explicativos ao fim do filme, sobreimpressos na imagem correspondente. Recurso, aliás, paródico e - mais uma vez - irônico, pois nos remete ao estilo ultra-convencional dos "dramas reconstituídos", sugerindo a continuação de uma "vida real" que o filme, por causa de seus evidentes limites, não poderia dar conta.

A ironia está justamente pelo tratamento em nada "realista" ou "dramático" da trajetória de Wood, vivido por Johnny Depp. O que temos diante de nós é uma espécie de narrativa fabulosa, espetacular, nascida da própria atmosfera lendária que cerca a personagem-título.

É no interior desta atmosfera que a tragédia se estrutura. Tim Burton descreve a trajetória de um homem cuja biografia se molda pela exceção. Tudo em Ed Wood - a personagem - é desviante. Ele é uma espécie de monstro criado por sua própria fantasia. Esta "monstruosidade" - e o que há nela de bondade, sobretudo - é o principal eixo trágico da condição de "autor" com a qual Burton trabalha. Em Hollywood (no caso de um filme americano seria o mesmo que dizer "no cinema", de um modo geral), pretender ser um "autor" é candidatar-se à galeria dos monstros condenados à mais completa solidão.

Estaríamos então diante de um raro caso em que o "autor" reflete seus próprios fantasmas? O universo freak dos filmes de Wood não seria nada menos que o próprio retrato de suas obsessões e de seu meio? Em parte sim, em parte não: Glen or Glenda, seu primeiro longa, foi um projeto encampado por Wood, mas ele buscou transformá-lo em um filme confessional. Ou seja: desde o princípio temos também um diretor às voltas com condições adversas e incríveis obstáculos para conseguir dinheiro e terminar um filme. A tão sonhada independência, neste processo, vai para o espaço. Seus filmes serão o resultado da mais precária equação entre projeto e realização, entre a tentativa de exprimir algo de pessoal e os compromissos comerciais.

Não é por acaso que, à certa altura, o filme de Burton forja o encontro entre Orson Welles (Vincent D’Onofrio) e Ed Wood. A conversa gira em torno das impossibilidades, dos desmandos de produtores, da frustração de projetos realizados sem liberdade. Welles é também uma exceção e, portanto, não há ali nenhuma diferença entre o "pior cineasta do mundo" e o gênio que aos 26 anos realizou Cidadão Kane.

Tim Burton aprofunda a sua abordagem centrando-se na relação entre Wood e Bela Lugosi (Martin Landau). Mais do que o episódio anedótico do encontro entre duas figuras incomuns, é a cumplicidade que verdadeiramente interessa, o sentimento nascido também do interesse recíproco: tanto um quanto outro sabe que a relação de dependência entre ambos é clara. Quem mais estaria disponível para ser o principal intérprete dos filmes de Wood? Que outro diretor motivaria-se a trabalhar com um astro do passado como Lugosi?

Mas esta dependência é logo ultrapassada pelos vínculos afetivos que cedo começam a se fortalecer entre ator e diretor. A narrativa fabulosa de Burton ganha aqui contornos especiais, e é então que a bondade surge como característica monstruosa: o mal está na indiferença e no desprezo; a solidariedade diante do fracasso é que redime a milenar solidão dos anormais.

Posicionando-se visionariamente em relação à sua própria infelicidade futura, Wood compreende Lugosi como um filho a seu pai. E, na condição de "protetor" do clássico intérprete de Drácula, esta relação paternal acaba invertendo-se: é Wood quem se torna um pouco o pai de Lugosi, que a todo instante o chama em momentos de crise aguda e depressão.

Entre ambos há sobretudo a cumplicidade de dois excluídos do "sistemão", que os vê como anacronias ou, no mínimo, figuras ridículas. É o tipo de relacionamento que se constrói tendo como base o "estilo", um estilo que é a tradução da alma de cada um. O que importa para Wood é a "alma" por trás da imagem. Isto é o que justamente acaba por fazê-lo "subverter" uma certa corrente "realista" hollywoodiana, substituindo-a pela "contribuição milionária de todos os erros" - quando o diretor de fotografia sugere a Wood que refaça uma cena na qual o brutamontes Tor Jonhson quase derruba a parede de um cenário, a sua resposta não poderia ser mais lúcida: na vida real isso de fato aconteceria. O que importa para Wood - segundo Burton - é ter "estilo".

É justamente a relação de amizade entre Bela Lugosi e Ed Wood - e não uma imposição exterior qualquer - que permitirá a este registrar uma das cenas de maior intensidade poética, na qual Lugosi sai de sua casa e resolve apreciar um pouco alguns detalhes da vida, tal como uma flor no jardim ao lado. Ali não havia projeto algum, apenas a necessidade de manter o ator vivo e ativo. Algum tempo depois, Bela morre. E Wood incorpora esta cena ao seu próximo filme.

Para o espectador brasileiro, relacionar Ed Wood com alguns aspectos do nosso cinema, especialmente a produção mais precária da Boca do Lixo paulista dos anos 80, pode sugerir alguns paralelos curiosos. Mas o que permanece destacado no filme de Tim Burton é um constante diálogo interno entre o espetáculo hollywoodiano e seu desmascaramento. A máscara, o disfarce, a caricatura, aliás, são artifícios centrais na construção do filme. Bem como o clima acentuadamente "infantil" (ou infantilizado) de toda a narrativa. Vive-se um mundo de faz-de-contas: discos voadores de papelão prateado, "atores" improvisados aqui e ali, cenários e objetos de cena que só funcionam como "denúncia de processo" (no início do filme, Wood lê uma crítica à sua montagem teatral que aponta, com cinismo, o "realismo" da encenação). Igualmente infantilizados são os relacionamentos de Wood com suas mulheres, bem como seu hábito de se travestir.

E Tim Burton não se furta a lançar mão de todos os recursos fantasiosos de fotografia e montagem para narrar a lenda de Ed Wood, com um requinte de produção e de "embalagem" em tudo oposto ao que caracterizou o cinema do biografado. Afinal, o que está em jogo é a supremacia do "sonho": o filme se interrompe quando Wood "alcança" o seu "auge", ou seja, o dia de estréia de Plan 9 From Outer Space. Diante da tela do cinema, Ed Wood, emocionado, prevê, no melhor estilo dos contos de fada: "É por esse filme que serei lembrado".

Luís Alberto Rocha Melo