A Cidade das Tristezas, 1989



A Cidade das Tristezas de Hou Hsiao-hsien

Em A Cidade das Tristezas, não sabíamos que diferença um simples puxar de cortina podia fazer na luz cinematográfica (Adeus ao Sul), então ainda nos assustávamos quando uma cena, toda estruturada em brumas, via-se cheia de luz ao acender de uma lâmpada, contrariando todos os cânones da verossimilhança e da construção luminosa no cinema. Mas essa mudança de construção luminosa é apenas uma etapa da transfiguração total que Hou Hsiao-hsien fará com a narrativa e com as idéias preconcebidas do cinema a partir desse filme, servindo, então, como uma bela metáfora de seu trabalho de criação.

A Cidade das Tristezas é a primeira parte da trilogia dedicada à memória coletiva de Taiwan de 1894 até os primeiros anos de República Nacional da China, com o domínio de Tcheng Kai-shek, a chegada do dinheiro ocidental e a crescente ocidentalização da ilha. Esse primeiro da série narra os acontecimentos entre 1945 e 49 a partir da experiência vivida de uma família de quatro filhos, um patriarca e alguns achegados. Só que o filme não tem um tom didático, professoral, em relação à História. A tentativa de Hou é mais capturar um movimento dos tempos, o ritmo de um momento passado do que uma história literal ou acadêmica dos tempos idos. Mais uma memória, aquilo que ficou agarrado na vivência concreta de uma população do que uma História formal, um relato frio dos acontecimentos. É por esse viés que funciona o relato discreto de A Cidade das Tristezas, apostando como forças-motrizes dessa narrativa nas cartas de uma mulher e nos escritos de um fotógrafo surdo-mudo, dois enamorados que observam os acontecimentos do mundo até, ao final do filme, serem eles mesmo vítimas dos próprios acontecimentos.

O filme começa com um nascimento: o do filho de Wen-heung, primogênito de Lin Ah-lu. O neném nasce quando o imperador Hiro-ito declara a capitulação após a bomba atômica pelo rádio. E é pelo rádio que essa família sabe da maior parte das notícias que vêm do Japão, da China continental ou até mesmo de Taipei. A história prossegue a partir dos laços dos três irmãos (o segundo irmão não voltou de uma guerra nas Filipinas). Enquanto Wen-heung luta para manter a casa familiar, uma espécie de restaurante, Wen-leung, inicialmente com problemas psicológicos causados pela guerra, começa a fazer negócio com a máfia de Xangai, e Wen-ching, o caçula, é fotógrafo e freqüenta círculos intelectuais anti-Kuomintang e em prol dos habitantes de Taiwan.

A Cidade das Tristezas conta a história de quatro anos de terra-sem-lei na ilha de Taiwan. Depois da retirada das tropas japonesas da ilha, Taiwan passa a ser governada por Chen Yi, que com uma política ditatorial – todos os magistrados eram da China continental, restringindo a população da ilha a quase escravos – e abusando do nepotismo. Em 1947, uma rebelião pró-Taiwan estoura. Com a vitória do Kuomintang, os rebeldes passam a ser caçados e presos ou assassinados, o que acontecerá com o cunhado e amigo de Wen-ching. O filme termina com a dilaceração da família: um perdido em guerra: um morto a sangue frio por oficiais do Continente, um tornado louco pela violência policial e um preso político, a família Lin só resiste a partir da figura do patriarca Ah-lu (Li Tien-lu, interpretação primorosa, cheia de um vigor contido a permanecer na momória por muito tempo), velho e fraco demais para conseguir impedir que qualquer de seus filhos tivesse um fim diferente. Os quatro filhos são uma espécie de reflexo do que a cultura de Taiwan se tornou a partir do domínio chinês em 1945.

Mas Hou Hsiao-hsien não quis só realizar um painel de um episódio ocorrido cinqüenta anos atrás. A Cidade das Tristezas também é o acúmulo de pesquisas realizadas em torno dos seus nove filmes anteriores, é a primeira vez que a função-Hou trabalha com todos os seus mecanismos. O número de planos decai muito, o plano seqüência passa a ter pequenos movimentos de câmera que entretanto podem mudar a lógica de cada cena, os planos dentro da casa da família Lin são de um apuro geométrico surpreendente, de uma construção similar à dos planos de Yasujiro Ozu, impedindo os pontos de fuga e trabalhando o espaço de forma que não sei saiba muito bem construir mentalmente uma contigüidade entre um aposento da casa e outro. É como se cada aposento tivesse seu valor em si, não em relação a qualquer outro quarto ou corredor. O fora-de-campo parece importar mais do que aquilo que está no campo. Há inúmeros planos de paisagem, uma poética que mais uma vez lembra a obra de Ozu. Mas, ao contrário do mestre japonês, com quem Hou não guarda muitas semelhanças (parece-nos mais assemelhado à grandiloqüência de Mizoguchi), o plano se estrutura dinamicamente, a partir da movimentação dos personagens, e não estaticamente, a partir da mobília e da arquitetura da casa.

O grande achado de Hou nesse filme, entretanto, diz respeito à narrativa. O protagonista, se há apenas um, é Tony Leung, que interpreta o caçula Wen-ching. Sem falar mandarim ou taiwan, a única solução de Hou foi transformar o personagem em surdo-mudo, e com essa mudança contingencial, A Cidade das Tristezas ganhou muito de seu interesse. A partir dos relatos que Wen-ching faz dos acontecimentos a sua amada (escrever é a única maneira com a qual consegue se comunicar), Hou estabelece uma estranha relação com o flash-back, figura tão constante no cinema que jamais se poeria pensar que ainda fosse possível uma revolução ou um novo uso dele. Depois de contado o acontecido, por meio de intertítulos – como no cinema mudo –, o que o espectador vê não é nada mais nada menos do que justamente ele viu escrito nos ideogramas de Wen-ching. Isso dá às imagens que aparecem como flash-back um caráter nada informativo (natureza do flash-back, a revelação de um passado), mas puramente evocatório, poético. As imagens não acrescenterão nada aos intertítulos em conteúdo informativo, mas darão consistência e peso simbólico ao relato. É a memória que funciona mais do que a história.

Há diversas cenas inesquecíveis em A Cidade das Tristezas. Poderíamos lembrar uma das últimas, onde Wen-ching e sua esposa, Hinami, descobrem que o irmão desta última está morto. Os dois corpos parecem inertes, enquanto o bebê dos dois amassa a carta, mostra-a para a mãe, até se perder por trás do corpo da mãe. Ou então a seqüência da morte de Wen-heung, que começa numa briga de facas num banheiro, perde-se por uns dois minutos até que a briga chegue à sala de estar e o chefe da casa tome partido nela. A Cidade das Tristezas parte da memória e fica na memória como o triunfo do discreto sobre o óbvio, da memória encrustada na pele sobre a frieza das folhas dos livros técnicos.

Ruy Gardnier