Câncer, de Glauber Rocha



Antonio Pitanga e Odete Lara fumam unzinho em Câncer, by Glauber Rocha

A mostra Cinema Marginal e Suas Fronteiras, que exibiu títulos raríssimos como Perdidos e Malditos, Os Monstros de Babaloo e Dezesperato, incluiu Câncer, de Glauber Rocha, em sua seleção. Gesto natural, já que um dos principais temas despertados pela mostra foram as sempre complicadas relações estéticas/políticas entre os experimentais e o cinema novo, exaustivamente comentadas em estudos, artigos e entrevistas mas quase nunca postas em termos de sua superação. Neste sentido, a exibição de Câncer assumiu especial interesse por traduzir alguns dos principais pontos de tensão e convergência entre as duas vertentes.

Filmado em 1968 e finalizado somente em 1972, Câncer parece ter acompanhado, à distância, o ciclo experimental. A sua "marginalidade" é de ordem diversa da que caracterizou parte dos demais filmes da mostra - ela não surgiu da censura ou de dificuldades mercadológicas impostas à obra, nem foi fruto de uma briga política, estética ou mesmo de gerações. Ela foi voluntariamente proclamada pelo próprio autor, em 1969: "Câncer é um filme particular, não vou enviá-lo a festivais, nem vou exibi-lo nos cinemas. Ou talvez o exiba, mas ainda não o terminei, falta fazer a montagem. No momento não estou interessado em fazê-lo porque meu prazer foi só filmá-lo e suponho que talvez o que esteja lá não tenha importância."

Se para Glauber o caminho do cinema eram "todos os caminhos", ele se esforçava em marcar posições claras: o cinema novo buscava o mercado como estratégia política, mas o underground não precisaria ter essa preocupação, já que seu compromisso com o público era pouco ou nenhum. Tese semelhante foi defendida por Gustavo Dahl, quando, em 1971, aconselhou ironicamente os "marginais" a se recolherem aos canais alternativos de exibição (ruas, espaços culturais), abandonando por completo o mercado que tanto atacavam. Com muito mais generosidade e espírito, Glauber não deixava de antecipar, com Câncer, esta visão.

No entanto, no conjunto dos filmes experimentais e do cinema novo, Câncer é um corpo estranho. Não se harmoniza mas também não diverge radicalmente de ambos, tal como um satélite a colher e remeter imagens, espécie de entre-safra glauberiana que gerará, pós-1975 (Claro), a "montagem nuclear" de Di (1977) e A Idade da Terra (1980). Câncer marca um dos primeiros movimentos em direção a uma nova concepção de montagem que terá reflexos decisivos até mesmo nos programas que Glauber irá realizar na TV Tupi, em Abertura (1979).

Sem dúvida importante para a trajetória pessoal de Glauber, Câncer não teve nenhum peso para a geração 68 e para o cinema novo, ao contrário de Terra em Transe (1967). Permaneceu como uma experiência de caráter técnico/estético (com o uso do som direto e a pesquisa em cima dos planos-seqüência) e como um dos raros e mais felizes momentos de convivência entre alguns dos aspectos característicos do cinema "marginal" e do discurso cinemanovista.

Seria interessante recuar até 1966, ano em que Glauber concedeu uma entrevista ao Suplemento Literário do Estado de S. Paulo ao então crítico Rogério Sganzerla. Os futuros autores de Terra em Transe e de O Bandido da Luz Vermelha conversam, com impressionante espírito amistoso, sobre um novo cinema no Brasil, e de certa forma antecipam as questões essenciais que marcarão o ano de 68. Questões que estarão expostas em Câncer: "um cinema verdadeiramente expressivo é o que se desenvolve assim: aos brados, aos gritos, aos impulsos, aos abortos", preconiza Glauber.

No filme, certa "visão de mundo marginal", se assim é possível defini-la, torna-se marcante através das personagens de Antônio Pitanga e de Hugo Carvana, não só pelo fato de serem dois assaltantes, mas porque tais personagens (especialmente o de Carvana) são extremamente individualistas. O individualismo é um recorte bastante raro nos filmes de Glauber. Em Câncer, ele é parte da dramaturgia da violência que interessava ao diretor desenvolver. Mas acaba sendo também um dos aspectos que mais o aproximam do cinema marginal, evidenciando o cinismo, a descrença, a perplexidade diante de horizontes fechados, com um humor incomum e com um despojamento muitas vezes desconcertante.

O humor, aliás, atravessa todo o filme em curiosos desdobramentos: Carvana e Pitanga fazem uma dupla de marginais que beira a comédia, numa chave de influência talvez não intencional. Espécies de Oscarito e Grande Otelo do lixo, brigam por um aparelho roubado de um gringo. Como nenhum dos dois sabe pra que serve o tal aparelho, a coisa resvala para a chanchada, com Pitanga protestando: "É a primeira vez que eu roubo alguma coisa de um americano". Ao que Carvana responde: "Se é de americano é negócio complicado".

Mais determinante do que o eventual aspecto chanchadesco de algumas passagens, é a indefinição dos personagens em um constante jogo de espelhos, transformações e desnudamentos, a cada bloco seqüencial. Assim, o "marginal" Carvana mais adiante encarna o "policial investigador" que vai interrogar o "militante" (Eduardo Coutinho), preso em flagrante distribuindo panfletos. Pitanga é simultaneamente um pária social injustiçado, indefeso, buscando desesperadamente fugir do desemprego e da fome, e o marginal cínico que enriquece e dá a volta por cima. Rogério Duarte e Hélio Oiticica, artistas marginais, têm verdadeira atuação policialesca e paternalista com o pária Pitanga. Luiz Carlos Saldanha é um misto de hippie e guerrilheiro. E Odete Lara oscila entre a confissão documental e a roupagem ficcional de seu personagem "classe-média". As fronteiras desaparecem, o conflito entre as classes altera a própria construção das personagens. A montagem é igualmente desestruturante: não há nenhuma evolução narrativa a conduzir as transformações.

Glauber, falando a Sganzerla na citada entrevista, considera que "uma obra de arte é um processo dramático-dialético". Para ele, "o perder-se e o descobrir-se" faz parte de "um ciclo ininterrupto que é o elo verdadeiramente profundo entre o espectador e o filme." Câncer, tal como grande parte dos filmes experimentais, nos quais as ações e as personagens são muitas vezes tão imprevisíveis quanto opacas, caminha exatamente nestes termos.

Uma das seqüências mais significativas em relação à ambigüidade de Câncer é a que mostra um diálogo entre Odete Lara e Hugo Carvana na sala de um apartamento. Retrato irônico da classe média, esta cena é um exemplo claro de como o individualismo marginal choca-se com o discurso subterrâneo do cinema novo. Diante da TV, Odete expõe, num depoimento bastante pessoal, suas opiniões sobre a moral, a fidelidade, a censura, a imagem que ela, como atriz, passa à sociedade. Carvana é o malandro que contrapõe a este depoimento algumas máximas: "Nós não temos nada a ver com as massas, somos dois otários, vendo televisão. Ao meio dia alguém que vê televisão merece ser violentado, você merece ser violentada por quatro crioulos com a camisa do Flamengo na estrada Rio-Petrópolis".

Paira sobre o diálogo um clima de marasmo, de sufocante inércia. Contra esse clima, Carvana deseja o apocalipse ("quero que o mundo termine pra ficar só nós dois sozinhos..."). Odete, ao contrário, mostra-se atormentada ("Talvez noutro país não fosse assim"; "Eu estou com as massas; por que eu teria de ser assassinada?"). Carvana incita: "Vai ver a vida, vai olhar o mundo!", mas sua conclusão já estava dita no início do diálogo: "A classe média é podre, você é podre".

A cena traduz o embate interno entre a ação e a indiferença proposital, entre o compromisso e o escracho, entre a visão coletivista e o individualismo - contrastes que refletem muito do que foi a discussão ideológica entre o cinema novo e o cinema experimental. Câncer oscila o tempo inteiro entre a visão construtiva e a desilusão. Em duas cenas diversas, Pitanga pergunta, aos berros, "quem descobriu o Brasil", e, apontando a arma para a câmera, grita que "o mundo não presta". O assassinato final como gesto libertador é imediatamente ofuscado por uma câmera que se desvia de Pitanga e enquadra, sem foco, à distância, alguém que observa as filmagens.

O discurso cinemanovista é ainda reforçado pela voz over de Glauber Rocha, a estruturar, teatral, os acontecimentos políticos a partir de 68: agitações estudantis e operárias, ditadura militar, AI-5, torturas, o resultado sendo o "sacrifício da classe operária e por cima o imperialismo norte-americano". É crítico ao seguir também o jogo de espelhos e desnudamentos, no qual a mesma intelectualidade que aparece na introdução do filme, discutindo perplexa uma arte revolucionária no Museu de Arte Moderna, ressurge sorridente ao fim, numa espécie de desfile de modas.

Câncer incorpora o documentário à ficção e engloba o marginalismo como interrogação íntima do discurso cinemanovista. O próprio Glauber anteciparia a Sganzerla: "Não tenho escrúpulos em apelar para qualquer estilo desde que incorpore às minhas idéias, desde que seja necessária à discussão do tema." O mesmo diria Sganzerla, em outro tom, dois anos depois, a propósito de O Bandido da Luz Vermelha: "O ponto de partida de nossos filmes deve ser a instabilidade do cinema – como também da nossa sociedade, da nossa estética, dos nossos amores e do nosso sono."

Luís Alberto Rocha Melo