Burton, crianças e animação



Vincent de Tim Burton

Um fato que muitos desconhecem sobre Tim Burton é que ele começou a carreira como um animador da Disney. Foi lá que ele realizou seu primeiro filme como diretor, o curta Vincent (1982), e foi lá também que começou a gestar seu projeto mais pessoal, que viria a se tornar O Estranho Mundo de Jack (1993) (segundo ele mesmo, dito em 1994, o que é comprovado com o título em inglês que possui um "Tim Burton's" antes do nome do filme). Por isso, não há novidade alguma na relação de Tim Burton com o mundo da animação. De fato, seus longas podem ser considerados inúmeras vezes como "desenhos animados com gente", tal a capacidade de criar um mundo novo e imaginário, como só a animação consegue fazer ao abstrair a presença dos atores e do mundo físico na frente da câmera. Como não pensar especialmente no trabalho de direção de arte e fotografia em filmes como os dois Batman, ou ainda Edward Mãos de Tesoura, Os Fantasmas se Divertem ou Marte Ataca! como verdadeiras tentativas de fugir do mundo real? Assim que nos dois trabalhos onde Burton lidou diretamente com animação, talvez encontremos as traduções mais livres de seu imaginário e de seu universo de temas e motivos audiovisuais.

Seu primeiro curta, Vincent, é uma ode a todas as crianças que em algum momento se sentiram deslocadas ou diferentes no mundo. Fala de um garoto de imaginação macabra que tenta contrabalançar seu dia a dia com fantasias inomináveis. Além de protagonizado por esta quintessência do "outsider" (a criança deprimida pode ser lida como metáfora em gênese da obra que seguiria), o filme traz inúmeras outras pistas do trabalho de Burton: um universo lúdico e imaginativo à flor da pele, a fascinação com a percepção de realidade alterada do expressionismo, a presença de Vincent Price como narrador. Mas, acima de tudo, impressiona no filme uma extrema melancolia que sobressai por lidar com o universo infantil. No final fica subentendido inclusive um suicídio.

Quando onze anos depois seria lançado O Estranho Mundo de Jack, Burton já havia realizado mais um curta e cinco longas, construído sua fama e burilado este universo original que havia em seu primeiro trabalho. Tanto confiava na influência deste estilo que, mesmo tendo escrito o roteiro a partir de idéia gerada na Disney ainda no início dos anos 80, ele decidiu não dirigir o filme. Julgava que o formato correto seria o da animação "stop-motion", e que o melhor nome seria o de Henry Selick, um especialista. Mas, não há dúvida de que importa menos quem assina a direção no final das contas, porque como o título em inglês indica, este é de fato um filme de Tim Burton.

O filme começa com uma narração que tenta ao máximo copiar a voz do já falecido Vincent Price, criando o clima dos filmes de terror que Burton tanto preza. Logo somos introduzidos ao ambiente em que se passará a história: Halloween Town, cidade onde vivem todos os seres míticos que habitam a imaginação do Dia das Bruxas. Já nesta introdução, percebemos o diferencial de Burton: num pretenso filme "infantil", tanto o visual absolutamente escuro quanto as personagens que surgem causam profundo desconforto. Quando mais adiante o protagonista, Jack Skellington visita "Christmas Town", a cidade do Natal, o contraste é total: lá tudo é feliz, dá certo, e Jack estranha: "What's this?" ("O que é isso?") Bem vindos na verdade a "Burton Land", onde tudo que é escuro e estranho é o normal, e a alegria é o diferente.

Se havia alguma esperança de um tradicional filme infantil, assim que começam as canções esta irá por água abaixo. A trilha de Danny Elfman (outra constante marca do cinema de Burton) é um evento por si só. As canções são incrivelmente depressivas, com letras complexas e cheias de entrelinhas, encenadas de forma absolutamente lúgubre, muitas vezes desafinada. As melodias são clássicas, e remetem ao cinema de horror, aos agudos e andamentos de tensão, de choque. As cenas musicais no filme são algumas das seqüências mais inventivas do cinema americano dos anos 90.

A primeira canção nos apresenta Jack, o protagonista, o rei do Halloween, que se encontra entediado com o ritual anual e quer algo mais. A canção é um lamento de um personagem em profunda depressão, que canta coisas como "Em algum lugar no interior destes ossos, um vazio começou a crescer..." Trata-se de Vincent (o personagem do curta) crescido. Ou talvez trate-se do isolado Bruce Wayne, criatura da noite, ou talvez de um Edward sem as tesouras.

Mas, à medida em que o espectador se acostuma com o aspecto lúgubre das figuras em cena (há mortos-vivos, lobisomens, vampiros, monstros, o protagonista é um esqueleto), fica claro que o filme é, como todos os outros de Burton, de fato um libelo a favor do diferente, do "outsider". Porque, na verdade, nenhum destes personagens estranhos é mau, não há sequer de fato um vilão no filme. Seus atos são motivados pela natureza de seu "feriado natural" (o Dia das Bruxas), mas são todos no fundo brincalhões, quase inocentes. Trata-se de fato de uma trupe de estranhos adoráveis (como não pensar no séquito de Ed Wood...).

Quando Jack conhece a alegria de Christmas Land fica completamente confuso, e maravilhado com esta novidade. Tenta entender cientificamente (ele lê sobre o Método Científico numa das "piadas para adultos") e pela lógica o porquê daquela alegria, o que motiva as ações bondosas deste universo que lhe escapa. É como se Burton quisesse mostrar quão estranha é de fato a felicidade. Aqui, tudo que há de bom, é o Outro, a diferença. Mas, Jack não discrimina nem se assusta com esta diferença. Fica sim fascinado, quer conhecer o Outro. Logo, decide ser o Outro. Quando perpetra as maiores crueldades contra as crianças do mundo ao substituir Papai Noel e entregar os presentes mais ameaçadores nos lares, em nenhum momento deseja o mal, segue apenas seu conhecimento do mundo, tenta viver a vida do Outro, mas sob seu entendimento do mundo. O fato dele não desejar ser cruel é evidenciado por sua surpresa com a má recepção ao que faz (mais uma vez, o mundo não tenta nem entende o "outsider"), seguida da tentativa de voltar atrás, de desfazer o acontecido.

Há no filme uma série de seqüências absolutamente perturbadoras ou engraçadas, dependendo da disposição do espectador. Como, por exemplo, o seqüestro do Coelhinho da Páscoa, que é mostrado apavorado em Helloween Land. Ou ainda a tortura do Papai Noel pelo Woogie Boogie . Nenhuma delas, porém, envolve maldade, apenas o conflito entre universos distintos. Mas, talvez a mais perturbadora seja uma cena sutil e rápida, quando a mocinha foge de uma torre onde se encontra presa atirando-se do alto desta. A cena toda é filmada como se tratasse de um suicídio, inclusive com a banda da cidade chegando para tocar a Marcha Fúnebre. Só então entendemos que, por ela ser uma boneca de pano de retalhos, costurada, seu corpo despedaçado é imediatamente recomposto e tratava-se simplesmente de um plano de fuga.

São cenas fortes para uma platéia de crianças. No entanto, o que fica destas seqüências, esta última em especial, é um resumo da visão de Burton da infância, algo importantíssimo de se entender não só neste filme, que seria voltado a um público infantil. No imaginário de Burton, a criança ser exposta a cenas como esta é, se não normal, comum. E o trauma é, sim, inevitável, mas talvez seja o que molde a consciência e a visão de mundo de uma infância que não pode ser de outra forma idealizada. Como não pensar em cenas como o massacre assistido pela criança em A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça ou ainda no assassinato dos pais em frente ao garoto Bruce Wayne? E, finalmente, como não remeter a Vincent, o menino-protagonista do curta? O olhar da criança (no caso seja ela personagem ou espectadora) não pode ser furtado deste contato com o que há de "escuro" no mundo, sob risco inclusive de formar uma visão preconceituosa e discriminadora. A proteção da criança pode levar ao medo do desconhecido.

Talvez se tomarmos os filmes de Burton a partir deste ponto de vista, o do olhar infantil, possamos ler seu universo imaginativo como o de uma criança que ouve contos de fadas, mas contos muito especiais, onde nem tudo que brilha é bom e onde a moral da história não é tão óbvia. De fato, Burton mantém o olho da criança ao filmar, e talvez busque como ideal no olhar do seu espectador o que ainda haja de infantil nele. É isso: se O Estranho Mundo de Jack foi feito para um espectador em especial, este seria o próprio Vincent, o garoto do filme de estréia. Talvez se ele visse mais filmes como este não teria aqueles pensamentos suicidas e se sentiria um pouco mais à vontade no mundo.

Eduardo Valente