Nenê Bandalho e Desesperato


Nenê Bandalho, de Emílio Fontana (1970),
e Desesperato, de Sérgio Bernardes (1968)


Nenê Bandalho, de Emílio Fontana

A Mostra Cinema Marginal e Suas Fronteiras serviu, entre outras coisas, para reavaliarmos a produção da passagem dos anos 60 para os 70, com o referencial de hoje, quando impera um padrão de qualidade global plim-plim que produz obras impessoais e, quase sempre, desprovidas de talento. A câmera tremida, a fotografia estourada e o diálogo improvisado típicos da marginália, são características distantes do cinema incentivado por benefícios fiscais destes tristes tempos. Mas é interessante notar como muitas obras do período udigrúdi conservam o frescor e a atualidade de trinta anos atrás, enquanto filmes como Eu Tu Eles e A Partilha, suspeito, ficarão no limbo do celulóide. A mostra serviu, sobretudo, para a (re)descoberta de filmes notáveis como Zézero (Candeias), Perdidos e Malditos (Geraldo Veloso) e Crônica de um Industrial (Luiz Rosemberg Filho), os quais nada devem aos sacramentados da cinefilia Bandido da Luz Vermelha, A Mulher de Todos, A Margem e Matou a Familia e foi ao Cinema.

No entanto, alguns filmes continuaram menosprezados ou até ignorados pelo público udigrudiano (se me perdoarem pelo neologismo do neologismo). Dentre os azarões, destaco dois: Nenê Bandalho, por alguns momentos muito além de sua própria mediocridade, e Desesperato, pela delirante concretização de um impasse da época do AI5. Explico, por partes: Nenê Bandalho não deu certo. É um filme que se arrasta desnecessariamente por uma idéia que daria um bom curta. O bandido Nenê é encurralado pela polícia. Nos momentos em que o cerco se afrouxa, ele acende um baseado e relembra fatos marcantes de seu passado. Por mais que os flashbacks sejam trazidos por meio de um artifício pueril, o efeito entorpecente da droga, é inegável que sejam eles os momentos que se salvam do filme. O primeiro flashback é o melhor. Temos Nenê quando criança. Em sua rua, três ociosos mexem com todo mundo que passa. Serão tratados como uma espécie de "três patetas do mal". Suas risadas antecipam, curiosamente, as de Beavis and Butthead. A lembrança assume seu lado trágico quando Moe, Larry e Curly (ok, perdão) resolvem invadir a casa do futuro bandido para estuprar sua mãe. A câmera auxilia o estupro, derrapando nas curvas da balzaquiana para desespero do filho que testemunha, impotente, a cena. Ela grita, mas só depois de uns dois minutos conseguimos ouvi-la. Neste momento, Nenê desperta. Trata-se de um pequeno curta-metragem inserido no longa. Como se o diretor tentasse costurar duas ou mais idéias num mesmo filme.

Há ainda o primeiro tiroteio. Os disparos são ensurdecedores e as pistolas atiram para todos os lados, numa total quebra de eixo. O efeito da cena é de antologia. Infelizmente, o filme vai provocando o tédio no espectador, a medida que não traz mais novidade. O cerco demora demais. Pessoas se aglomeram para ver, até vendedores de pipoca aparecem, mas a saga do bandido já não interessa mais. Até os flashbacks perdem a força. Nenê Bandalho é, portanto, um apanhado irregular de idéias, o que não resulta num bom filme.

Desesperato já é mais bem acabado, redondinho. Pode-se contestar sua resistência ao tempo. O filme soa datado. Mas desde quando isso é sempre negativo? Quase toda obra que retrata passionalmente a sua época, acaba ficando datada um dia. Acompanhamos o impasse de um intelectual, vivido por Raul Cortez, insatisfeito com a situação política (estamos falando do regime militar, na véspera do AI5). Ele chega do exterior, encontra sua bela mulher, conversa com outros intelectuais, mas não vê saída. Desespera-se com o mundo burguês que o rodeia. Em uma seqüência belíssima, ele seduz sua esposa com fúria, no meio do bosque. Uma cena muito bem filmada, com uma fotografia belíssima de Edson Santos. O filme todo é muito bom no campo formal. Sérgio Bernardes, que só realizou este filme maldito, revela-se um excelente diretor.

Durante uma festa, o intelectual inicia seu longo delírio. Ele assassina um figurão, parte para a clandestinidade, vira um guerrilheiro. Na batalha final, o inimigo não é visto, mas atira para matar. Esse longo delírio é o ponto alto do filme, ao mesmo tempo que o torna ainda mais datado. A opção da guerrilha como a única possível, ainda que suicida, sugere um quase conformismo com o estado das coisas pela descrença no ser humano. Mas será que é isso mesmo? O final não responde.

Sérgio Alpendre