A Terceira Margem do Rio



A Terceira Margem do Rio de Nelson Pereira dos Santos

Muito se fala, a propósito de Guimarães Rosa, de tradução. Tradução de seu estilo para o audio-visual, ou da possibilidade de tradução, seja lá de que autor for, do texto para a película. Da obra do mineiro-mago das palavras, já tivemos obras tão díspares quanto A Hora e a Vez de Augusto Matraga, Sagarana e Outras Estórias. Todas, de alguma forma, propondo transpor um universo literário para a tela. A Terceira Margem do Rio, entretanto, opera outra relação com a obra de Rosa: abandona a tentativa de tradução e se apropria dos relatos do escritor (todos do livro de contos Primeiras Estórias) para construir um relato próprio, pessoal, de estilo Nelson Pereira dos Santos. Toda a bruma, o magma que circula pelos vocábulos pinçados, recriados por Rosa desaparece na escrita cinematográfica simples, luminosa, límpida de Nelson Pereira.

Daí resulta um filme inesperado, de um gosto raro, mas não sem certo amargor, aipo. O autor de A Terceira Margem do Rio considera sua obra como um esboço, como um desenho não-finalizado. Mas só se for no sentido da produção do filme, afetada em diversos pontos numa época em que era praticamente impossível produzir um filme sem estar com a faca na garganta. De fato, alguns momentos em que certos "efeitos especiais" são necessários não se realizam a contento na tela. Mas por que os efeitos especiais entre aspas? Porque para Nelson Pereira não há efeitos especiais. Tudo que aparece à tela o faz com naturalidade surpreendente, seja o corpo fechado em O Amuleto de Ogum, seja os milagres da "santinha" em A Terceira Margem. O cinema de Nelson é sempre um cineam da saída fácil. Mas essa saída fácil não deve ser entendida no sentido da preguiça, da falta de técnica ou de coisa que o valha. A saída fácil em Nelson Pereira responde a uma necessidade interna de verdade do plano cinematográfico: ele acredita, ele vê os objetos, a realidade se abre e se estende em seu cinema. O maravilhoso não vem de outro mundo, ele está sempre presente, imanente, no mundo.

Muito se falou, a respeito desse filme, da oposição entre campo e cidade, a ponto de se partirem dois filmes: um, excelente, feito no campo; outro, patético, feito na cidade. Essa distinção não nos parece feliz, atendendo talvez a uma mitologia que o próprio autor de Vidas Secas já possui como também o próprio cinema novo, a de voltar a um Brasil profundo. Pois bem, a naturalidade da câmera de Nelson Pereira parece ser permitida ali onde o Brasil parece mais Brasil, mas não em Brasília, na cidade satélite, no ambiente "feio" que é mostrado. Mistificação imagética. Pois as imagens da cidade de Brasília são algumas das mais belas do cinema brasileiro nesse período. Ao contrário da pobreza maquiada vigente em grande parte do cinema brasileiro do período (Central do Brasil como ícone máximo), Nelson filma uma casa de cidade satélite como ela é: pequena, com mobília se aglomerando uma em cima da outra dando pouco espaço para os próprios habitantes se locomoverem; a prevalência da televisão como objeto principal (ela sempre está ligada) e central no ambiente; o barro que molda as casas e a poeira (também da cor de barro) das ruas não pavimentadas. Além das imagens da chegada a Brasília: forçados a abandonar a roça, a família observa a chegada à grande cidade em travellings sem qualquer magia, o gigantismo dos monumentos parecendo zombar do destino dos camponeses.

Tirando neo-realismo da escrita imantada de Guimarães Rosa, A Terceira Margem do Rio também consegue ser um instrumento de denúncia. Porque se há um grande tema do filme, que o perpassa de cabo a rabo, é a terra-de-ninguém que existe tanto no campo quanto na cidade: a família de Liojorge se encontra perseguida pelos terríveis irmãos Dagobé, que por meio de coação e corrupção criam uma pequena máfia por onde passam, ameaçando e achacando a população, tendo toda a permissão da polícia local para isso. A lei é a da selva, e quem não se acostuma com isso se acovarda. E a tomada de posição é, no final do filme, a saída. Liojorge, recém saído da prisão, conjuga esforços para recuperar sua esposa, raptada pelos irmãos Dagobé, mesmo que para isso seja preciso matar os malfeitores. Não satisfeito, deve sustentar sua honra indo ao funeral de um defunto seu. E, ao fim do filme, lutar contra o destino familiar, que o prepara uma vida mística, senão mitológica, onde teria que abandonar a família e viver entre as margens do rio que passa à frente de sua casa, numa terceira margem, invisível, inefável. Se a terceira margem em Rosa é o espaço do mágico do mundo, da presença da transcendência, do excesso de mundo, é aí justamente que Nelson perde um pouco a mão no filme. Porque o último "não" do filme, em que Liojorge não se reconcilia com o destino que o espera (e que em um momento do filme ele chega a pedir), é assonante com a progressão temática do filme (a decisão) mas destoa profundamente com a religiosidade que o filho tem em relação à decisão do pai. Daí o fim parecer gratuito, deslocado.

Mas A Terceira Margem do Rio tem muito mais que isso. Tem ao menos uma seqüência de antologia. Casado com Alva, Liojorge dá uma festa de casamento. E o que Nelson Pereira nos prepara? Em poucos planos, realiza-se de fato um banquete e a solução do mestre é: filme-se esse banquete como um documentário. A câmera se perde entre as gentes, os cortes são bruscos, um plano não prepara o outro e o espectador se deleita com a beleza das imagens, que deriva de sua verdade. Como nenhum outro no Brasil, Nelson Pereira crê naquilo que tem diante dos olhos.

Ruy Gardnier