Sonhos e Histórias de Fantasmas



Sonhos e Histórias de Fantasmas de Arthur Omar

A imagem de um cavaleiro e seu cavalo...uma montaria silenciosa...uma mula sem cabeça! A imagem se move lentamente, aos poucos, como que emergindo de dentro do animal, seu pescoço se vira e se revela – a cabeça escondida atrás de seu dorso...

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Em meio aos inúmeros filmes que marcaram a Retrospectiva Arthur Omar no CCBB (desde o clássico Triste Trópico até a mais recente série inspirada em desfiles de moda) tive a feliz surpresa de descobrir um filme... Um filme como poucas vezes se descobre, um filme que conjuga de forma única muito do que Arthur Omar fez de melhor em sua obra... Sonhos e Histórias de Fantasmas de 1996.

Apesar da aparente repetição de temática voltada para as peculiaridades da cultura popular – o filme de Omar é outra coisa, totalmente diferente. Antes de qualquer aspecto, o filme não trata, nem explica nem descreve rituais – muito mais: o próprio filme é uma extensão desses rituais observados. Omar faz do filme uma leitura muito pessoal dos eventos filmados, não se calcando numa defesa da cultura de religiosidade negra, mas numa invenção de si mesmo em relação àquela realidade difusa a qual não apenas filmou mas com a qual conviveu. Omar se suja daquela realidade e o que vemos no filme são os rastros dessa realidade no cineasta. Como um pedaço de metal imantado – Omar sai do Quilombo com os olhos abarrotados daquele imaginário. Trata-se não de uma projeção daquela realidade em forma fílmica, mas de seus reflexos no filme – como se toda aquela realidade agisse qual um foco de energia sobre uma camada sensível de imagem: Omar e sua câmera.

Ao mostrar as imagens e os depoimentos dos moradores do Quilombo, a imagem de Omar é a de um total não julgamento dos temas. Ou melhor, Omar entra no jogo daquele imaginário e passa a tratá-lo com o cuidado e o mistério que aqueles personagens se colocam. Omar enxerga a aura autoproposta pelos personagens e, ao invés de julgá-la ou transformá-la em peculiaridade, a recria na imagem e na trilha sonora como que modelando aquelas auras em forma de filme. O mundo mágico vivido pelos personagens de Omar é por ele absorvido de modo extremamente pessoal e reformulados em imagens – o próprio filme se torna um objeto mágico. A trilha sonora não só respeita aqueles rituais como lhes dão as importâncias que os personagens se dão: um grupo de senhores com panos roxos na cabeça não são apenas velhos de turbante. Para o filme de Omar, assim como para seus personagens, esses senhores não são figuras caricatas: pelo contrário, ali no filme, como no mundo mágico que eles mesmos nos contam, eles são os mensageiros da morte! A música respeita isso, as imagens respeitam isso! O filme faz a ficção de se realizar em filme o imaginário de seus personagens – abdicando da objetividade documental e embarcando sem pudores na visão mística proposta pelos moradores do quilombo e suas antigas tradições de vida e morte. As imagens são tratadas com reverência quando assim merecem – outras que nos pareceriam imagens fortes, como o sacrifício de um porco, são retratados com a mesma naturalidade com que aqueles homens simples matam o animal. Omar documenta não a realidade física de seus personagens, mas o seu sentimento em relação àquela fantasia. Fantasia não tratada como externalidade, mas como eixo central do filme até que entre um corte de imagem e outro... o filme nos dá uma rasteira:

E que rasteira! Do tradicionalismo místico do Quilombo somos lançados em meio a um grupo de MCs, funkeiros de um morro carioca!

O salto espaço-temporal aparentemente sem motivos, a diferença nos códigos, nos gestos, nos modos de falar e se colocar diante da câmera são desconcertantes... Omar não nos deixa acostumar com as imagens do Quilombo – quando já conseguimos nos sentir "seguros" naquele mundo místico, o filme nos dá essa rasteira certeira e nos coloca diante de uma espécie de outra dimensão. Omar com isso quebra uma das questões mais interessantes do documentário – sem fazer associações diretas ou paralelismos – a do recorte de mundo que é a própria escolha do tema. Dois mundos se projetam diante de nós... e o recorte documental do mundo se explicita em sua fragilidade. O filme de Omar nos faz lembrar de supetão que há sempre um pouco mais de mundo a ser visto e imaginado do que um filme sozinho poderá mostrar. Há sempre uma incompletude! Há sempre um filme a mais esperando ser feito – do Quilombo ao funk, nada começa ou termina, como dois mundos diferentes, como a presença de dois mundos num só. A realidade expandida criada por Omar em seu filme traz um das mais interessantes quebras de diegese do Cinema (como naquele salto de Simão no Deserto...) – as imagens se alternam entre o místico ritualístico e o carnal do baile funk como constantes surpresas seguidas.

O funk e o Quilombo – rituais diferentes, mundos diferentes – misturados no filme numa montagem de contrastes e cortes. Aos poucos o funk se torna um ritual místico, aos poucos o quilombo se parece uma festa... Os pequenos meninos-planta vestidos de folhas, as meninas dançando agachadas no baile funk – expressões de uma cultura negra distanciada por séculos e quilômetros, aproximadas no Cinema de Omar, convivendo diante de nossos olhos. De repente toda a idéia de tradição, evolução, carne e misticismo se confundem – Omar faz de seu filme um painel de sentidos e percepções de mundo, de criação de mundos. Como um mundo que sempre está incompleto – a pergunta final de um velho do Quilombo é emblemática: "E você acha que o mundo acaba?..."

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Um grande filme, se situando ao lado de Santo Forte (de Eduardo Coutinho) como um dos dois grandes filmes sobre religiosidade e espiritualidade realizados no Cinema Brasileiro. Um Omar em estado de graça, reunindo diversos elementos estéticos de seus estudos anteriores – o êxtase, a glória, e o misticismo dos gestos... O mistério do mundo em pequenos detalhes de olhares e os raros instantes em que personagem e diretor se esbarram, como dois pequenos peixes numa enxurrada: é da faísca que Arthur Omar faz seus filmes.

Felipe Bragança