Sonhos
e Histórias de Fantasmas


Sonhos e
Histórias de Fantasmas
de Arthur Omar
A imagem de um cavaleiro e seu cavalo...uma
montaria silenciosa...uma mula sem cabeça! A imagem se move lentamente,
aos poucos, como que emergindo de dentro do animal, seu pescoço
se vira e se revela – a cabeça escondida atrás de seu dorso...
* * *
Em meio aos inúmeros filmes que marcaram
a Retrospectiva Arthur Omar no CCBB (desde o clássico Triste
Trópico até a mais recente série inspirada em
desfiles de moda) tive a feliz surpresa de descobrir um filme... Um filme
como poucas vezes se descobre, um filme que conjuga de forma única
muito do que Arthur Omar fez de melhor em sua obra... Sonhos e Histórias
de Fantasmas de 1996.
Apesar da aparente repetição
de temática voltada para as peculiaridades da cultura popular –
o filme de Omar é outra coisa, totalmente diferente. Antes de qualquer
aspecto, o filme não trata, nem explica nem descreve rituais –
muito mais: o próprio filme é uma extensão desses
rituais observados. Omar faz do filme uma leitura muito pessoal dos eventos
filmados, não se calcando numa defesa da cultura de religiosidade
negra, mas numa invenção de si mesmo em relação
àquela realidade difusa a qual não apenas filmou mas com
a qual conviveu. Omar se suja daquela realidade e o que vemos no filme
são os rastros dessa realidade no cineasta. Como um pedaço
de metal imantado – Omar sai do Quilombo com os olhos abarrotados daquele
imaginário. Trata-se não de uma projeção daquela
realidade em forma fílmica, mas de seus reflexos no filme – como
se toda aquela realidade agisse qual um foco de energia sobre uma camada
sensível de imagem: Omar e sua câmera.
Ao mostrar as imagens e os depoimentos dos
moradores do Quilombo, a imagem de Omar é a de um total não
julgamento dos temas. Ou melhor, Omar entra no jogo daquele imaginário
e passa a tratá-lo com o cuidado e o mistério que aqueles
personagens se colocam. Omar enxerga a aura autoproposta pelos personagens
e, ao invés de julgá-la ou transformá-la em peculiaridade,
a recria na imagem e na trilha sonora como que modelando aquelas auras
em forma de filme. O mundo mágico vivido pelos personagens de Omar
é por ele absorvido de modo extremamente pessoal e reformulados
em imagens – o próprio filme se torna um objeto mágico.
A trilha sonora não só respeita aqueles rituais como lhes
dão as importâncias que os personagens se dão: um
grupo de senhores com panos roxos na cabeça não são
apenas velhos de turbante. Para o filme de Omar, assim como para seus
personagens, esses senhores não são figuras caricatas: pelo
contrário, ali no filme, como no mundo mágico que eles mesmos
nos contam, eles são os mensageiros da morte! A música respeita
isso, as imagens respeitam isso! O filme faz a ficção de
se realizar em filme o imaginário de seus personagens – abdicando
da objetividade documental e embarcando sem pudores na visão mística
proposta pelos moradores do quilombo e suas antigas tradições
de vida e morte. As imagens são tratadas com reverência quando
assim merecem – outras que nos pareceriam imagens fortes, como o sacrifício
de um porco, são retratados com a mesma naturalidade com que aqueles
homens simples matam o animal. Omar documenta não a realidade física
de seus personagens, mas o seu sentimento em relação àquela
fantasia. Fantasia não tratada como externalidade, mas como eixo
central do filme até que entre um corte de imagem e outro... o
filme nos dá uma rasteira:
E que rasteira! Do tradicionalismo místico
do Quilombo somos lançados em meio a um grupo de MCs, funkeiros
de um morro carioca!
O salto espaço-temporal aparentemente
sem motivos, a diferença nos códigos, nos gestos, nos modos
de falar e se colocar diante da câmera são desconcertantes...
Omar não nos deixa acostumar com as imagens do Quilombo
quando já conseguimos nos sentir "seguros" naquele mundo
místico, o filme nos dá essa rasteira certeira e nos coloca
diante de uma espécie de outra dimensão. Omar com isso quebra
uma das questões mais interessantes do documentário – sem
fazer associações diretas ou paralelismos – a do recorte
de mundo que é a própria escolha do tema. Dois mundos se
projetam diante de nós... e o recorte documental do mundo se explicita
em sua fragilidade. O filme de Omar nos faz lembrar de supetão
que há sempre um pouco mais de mundo a ser visto e imaginado do
que um filme sozinho poderá mostrar. Há sempre uma incompletude!
Há sempre um filme a mais esperando ser feito – do Quilombo ao
funk, nada começa ou termina, como dois mundos diferentes, como
a presença de dois mundos num só. A realidade expandida
criada por Omar em seu filme traz um das mais interessantes quebras de
diegese do Cinema (como naquele salto de Simão no Deserto...)
– as imagens se alternam entre o místico ritualístico e
o carnal do baile funk como constantes surpresas seguidas.
O funk e o Quilombo – rituais diferentes,
mundos diferentes misturados no filme numa montagem de contrastes
e cortes. Aos poucos o funk se torna um ritual místico, aos poucos
o quilombo se parece uma festa... Os pequenos meninos-planta vestidos
de folhas, as meninas dançando agachadas no baile funk – expressões
de uma cultura negra distanciada por séculos e quilômetros,
aproximadas no Cinema de Omar, convivendo diante de nossos olhos. De repente
toda a idéia de tradição, evolução,
carne e misticismo se confundem – Omar faz de seu filme um painel de sentidos
e percepções de mundo, de criação de mundos.
Como um mundo que sempre está incompleto – a pergunta final de
um velho do Quilombo é emblemática: "E você acha
que o mundo acaba?..."
* * *
Um grande filme, se situando ao lado de Santo
Forte (de Eduardo Coutinho) como um dos dois grandes filmes sobre
religiosidade e espiritualidade realizados no Cinema Brasileiro. Um Omar
em estado de graça, reunindo diversos elementos estéticos
de seus estudos anteriores – o êxtase, a glória, e o misticismo
dos gestos... O mistério do mundo em pequenos detalhes de olhares
e os raros instantes em que personagem e diretor se esbarram, como dois
pequenos peixes numa enxurrada: é da faísca que Arthur Omar
faz seus filmes.
Felipe Bragança
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