Resgate
Cultural é resgate cultural


Resgate
Cultural dos grupos Telephone Colorido e Pajé Limpeza
Alguma
coisa acontece no cinema pernambucano. E alguma coisa aconteceu no Festival
Universitário. Resgate Cultural aconteceu. Poucas vezes
nos últimos anos se viu um cinema tão audaz aparecer chutando
as portas de todo mundo. É claro que a primeira referência
que vem à mente é o Sganzerla do Bandido da Luz Vermelha
e dA Mulher de Todos, mas isso explica muito pouco. Ou nada. Ânsia
de cinema, escracho, urgência, trivialidade, irreverência...
Engraçado que isso seja sempre associado à pouca vontade
de construir um discurso. Pois Resgate Cultural O Filme
é todos os adjetivos acima e, sim, sustenta um discurso. Um belo
discurso.
Da
mesma forma que os filhos da tradição inovam, os exteriores
a ela, quando querem dela se apropriar, o fazem com discrição,
respeito, e sem possibilidade de inovação. Os integrantes
do Telephone Colorido e da banda Pajé Limpeza estão do lado
dos primeiros. Acima de tudo porque Pernambuco vive uma relação
com a memória popular, folclórica, que é forte e
asfaltada pelos movimentos de preservação, sobretudo o Armorial,
representado por Ariano Suassuna, esse aí de cima, que no filme
é seqüestrado (um personagem, bem entendido) e mantido em
cativeiro até que se consiga N-fatorial figuras do Mestre Vitalino.
Com esse arremedo de argumento, eles conseguem montar um filme interessante,
que destoa de toda a produção brasileira contemporânea
(o único filme que vem à cabeça por semelhanças
é Polêmica de André Sampaio) e que vai criativamente
se apropriando da cultura folclórica local para recolocá-la
em questão em outro nível.
O
filme não foi unânime. Causou comoção o modo
como os elementos de cultura popular foram tratados. Considerado menos
blasfemo do que desrespeitoso, o argumento ao contrário parece
a esse escriba profundamente inteligente, esperto e, no limite, se revelando
de um amor profundo por tudo aquilo que ele filma. A cena que mais aparece
no filme é a revolta dos grupos folclóricos e de todos seus
defensores contra o grupo dos seqüestradores (que são identificados
com os diretores do filme, não sei se de fato são). Pois
bem, mas não é Seqüestro Cultural, é
Resgate Cultural.
E
Resgate Cultural é um inventário. Um inventário
sobre tudo que o Recife vive, e mesmo que mantenha muitas diferenças
com as cidades grandes do Sudeste, não deixa de apaixonar pelo
modo como todas as "pressões" culturais são colocadas
em choque, curto-circuitadas: árido-movie (espécie de equivalente
cinematográfico ao manguebit), Chico Science (e a mistura de rock
com maracatu), folclore, Ariano Suassuna (espécie de Felipão
da cultura nordestina, e para quem não sabe um purista, avesso
a misturas) e os acordes de heavy-metal que pontuam o filme com sotaque
estrangeiro.
Pois
bem, a riqueza do filme é que ele não pende pra nenhum dos
dois lados, mas recoloca os dois em jogo. Tanto incorpora a cultura estrangeira
quanto apóia e admira a local, filmando não uma controlando
a outra, mas as duas como um embate, necessário, vital. O que diz
respeito também à constituição de uma memória.
Se uma geração nova encara a sua tradição
como solene, quase religiosa, essa tradição certamente será
"folclórica", mas jamais seria incorporada como dado
vital, existencial dessa geração. Encapsulada, vivendo com
respiração artificial, uma cultura mesmo minoritária
não se mantém, não se sustenta. Seja qual
for a força dos grupos resistentes, uma arte plácida morre.
Morre, talvez, de excesso de respeito. Ao contrário, o Telephone
Colorido sabe fazer para a sua geração o que era necessário:
tirar a cultura popular do pedestal, fazer ela conviver no mesmo pé
de igualdade que todos os elementos, sejam eles tradicionais ou não,
sejam eles estrangeiros ou próprios. Para alguns, isso é
desrespeito. Para o autor dessas linhas, é a chance de uma sobrevivência
vigorosa que o filme dá à tradição. Resgate
Cultural O Filme é forte, quer mais confundir do que
explicar, mas acima de tudo ele cria uma vivência. Um maracatu,
mas atômico. Uma rave-ciranda.
Ruy
Gardnier
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