Plano Geral Julho 2001

Crônica: Entre Shrek e Roger Rabbit (Felipe Bragança)
Crônica:
Filmagem Clandestina (Guilherme Sarmiento)
Carta:
do leitor e colaborador Cezar Migliorin


CRÔNICA
Entre Shrek e Roger Rabbit

Aclamado como um filme de animação irresistível, defendido como uma inteligente crítica aos padrões narrativos dos estúdios Disney, Shrek me parece mais um embuste do mercado publicitário, mais um fruto de uma campanha que vende alhos e não se importa em nos projetar bugalhos. Ao contrário da ruptura sarcástica atribuída ao filme, Shrek não passa de uma pedante tentativa de usar o universo de fábulas Disney como trampolim para suas piadas calcadas na paródia dos desenhos animados clássicos. Uma mistura de Mel Brooks com uma baita falta de imaginação. Não há nada em Shrek que já não se tenha visto em desenhos animados como Os Simpsons, Animaniacs ou o longa que deu origem a muito de tudo isso:

Uma Cilada para Roger Rabbit (de Robert Zemeckis,1988), produzido pelo mesmo Spielberg que agora encabeça a Dreamworks, foi sim um marco no estabelecimento de uma meta-linguagem irônica em relação aos códigos do "cartoon" clássico. Ao colocar personagens de desenho animado numa trama policial noir, convivendo com atores de carne e osso numa investigação sobre um personagem de desenho animado que assassina outros desenhos, o filme com produção da mesma Disney, foi a primeira bem sucedida experiência comercial e de crítica do gênero. O personagem do bebê-ator que fuma charutos nos bastidores das "filmagens" do desenho, e a exuberante mulher casada com um coelho, são brincadeiras muito mais inteligentes do que qualquer pum dado por um Ogro! Uma década depois, a Dreamworks vem dizer que está inovando... Cá ente nós, o encontro de Mickey Mouse com Pernalonga (dois inimigos de décadas de Disney e Warner B.) durante um salto de pára-quedas de Roger Rabbit foi sim fazer história. O resto é bobagem...

Shrek, muito pelo contrário, ao invés de apresentar algo de novo, é fruto, sim, de uma já grande aceitação do público infantil e adolescente dessa nova linhagem de animação calcada na auto-ironia e na reflexividade em relação a seus códigos de linguagem.

O que parece ter acontecido com Shrek é que, pela primeira vez, um estúdio de animação que não a toda-poderosa e condenada Disney tenha embutido tanto dinheiro e publicidade na realização de um filme de animação nesses moldes.

O segredo de Shrek, portanto, é a DreamWorks: uma esperta resposta a um mercado de animação renovado, onde desenhos como Animaniacs batem recordes de audiência e afundam clássicos animados de Walt Disney. Não há nada de novo no filme que o faça merecedor desse status de ruptura; a não ser sua brilhante campanha de marketing: uma campanha que o vendeu como uma espécie de contra-cultura, de filme cool modernoso. Que conseguiu se infiltrar em Cannes e concorrer à Palma de Ouro ao instigar o velho recalque contra os estúdios Disney. (Quanto prazer não devem ter sentido ao escalar pela primeira vez um desenho animado desde a década de 1970 e este não ser da gigantesca Walt Disney?...)

Quanto aos personagens, a ferramenta de se usar um personagem feio e monstruoso como herói não é nenhuma novidade – o papel do anti-herói mal-encarado já havia sido introduzido nos longas de animação desde A Bela e a Fera, passando pelo grotesco dO Concunda de Notre Damme. O personagem do burrico repete a tradição Disney de personagens cômicos (um plágio de Pumbaa misturado com Timon) e o vilão baixinho é um lugar comum recorrente. Além disso, o melhor personagem, o da princesa, já foi trabalhado de forma muito parecida em O Corcunda de Notre Damme onde Esmeralda, a cigana, fazia acrobacias e desafiava o poder do grão-juiz. Tentando se vender como moderninho, o filhote da Dreamworks apela para instrumentos patéticos: substitui a cantoria dos personagens Disney por uma trilha sonora cult, de aspecto "indie’’, substituindo o classicismo e abarrotando o filme de sucessos com a cara mal-lavada da MTV.

De resto o filme é uma falsa releitura dos valores clássicos do conto de fadas: A única oportunidade que o filme se dá de tentar buscar uma renovação é na curiosa insinuação de um romance entre o monstro Shrek e a princesa. Talvez se os dois tivesses ficados juntos , ele como um monstro, e ela como humana, tivéssemos um fator interessante em sua solução narrativa. Mas não: a princesa fica feia, se iguala ao monstro e se revela numa beleza do "que há por dentro..."

O amor só é possível entre os iguais? A feiúra só pode ser bela a quem também é feio? O que Shrek tenta passar com esse final feliz? A brincadeira em juntar o burrico com um dragão fêmea talvez seja o sinal de que faltou mesmo coragem para se repetir o contraste estético em relação a seus protagonistas.

Um equívoco típico de quem quer dizer mais do que tem a dizer: isso é Shrek... Tecnicamente interessante, de resultado de animação mediano – narrativamente fraco. Qualquer episódio de Animaniacs é muito mais anárquico e consistente. Por que neles, não se vende uma falsa "nova estética" de negação dos valores clássicos da animação e dos contos de fadas: mas uma formulação nova que sabe dialogar com a tradição , respeitando seus elementos e suas lições – brincando com ela. Aprendendo com ela.

Felipe Bragança

CRÔNICA
Filmagem Clandestina

Torço contra o cinema brasileiro. Detesto os filmes da nova safra, que mais parecem alfaces transgênicos, sem gosto, extinguindo de sua superfície a bosta das moscas varejeiras, das bactérias, dos carunchos, para o todo e sempre. Torço contra.

Estou na arquibancada vaiando a assepsia, segurando minha super-oito que mastiga um hectacrome vencido, apontando para o campo onde o grande lance se frustra. Toda vez que isolam a bola, num chute de bico, é uma gargalhada. Cada jogada violenta, para mim, é um regozijo. Menos um publicitário em campo, menos um; Sai de maca, entra outro rapidamente em seu lugar. Até quando sustentaremos essa cambada de inúteis, que se multiplicam com rapidez no meio da escuridão e sobrevivem da miséria, fazendo com que os infelizes enterrem suas mãos nos seus bolsos para tirarem o último tablete de moeda, hein? Filmo tudo sem saber quando vou revelar o meu filminho vencido. Possivelmente, se algo for emulsionado neste filme com validade finda em 1970, tudo o mais vai ser azul e desbotado. Sim, a quantidade de gols perdidos e as jogadas feias e mal feitas serão engolidas pelo esquecimento de um material mofado, cansado, do século passado. Os que torcem a favor, não precisam se preocupar.

O cinema hoje serve, a grosso modo, para sustentar o decadentismo de uma juventude ociosa que nunca soube o que fazer da vida e, de repente, pede ao titio ou a titia um lugar de assistente de direção só pra ver qualé. Vai ficando, vai gostando do negócio. O que ganha dá prá comprar um peso, dá prá botar gasolina no palio, dá até prá pensar em casar e alugar um ap em um lugar bem acessível. Lá pras tantas o elemento coça a cabeça e pensa assim: Pô, tô cansado de trabalhar nesse mercado, de viver nesse capitalismo selvagem. Vou fazer meu curtinha. E assim o cinema brasileiro vai se consumando. Eu sei por que tudo isso eu registro no meu filminho vencido.

(Por que, por que será que eu ainda insisto em filmar tudo, se a possibilidade de nada imprimir é grande, a possibilidade...? devo admitir que para mim o cinema tornou-se nicotina. O câncer tomou conta de meus olhos. Filmo por filmar, sabendo o quanto isto me faz mal. )

Divirto-me muito ao perceber que um roteiro meu não ganhou o concurso nacional, e que o nome de algum conhecido está lá, um conhecido que entrou no campo como gandula, que ficou ali na beiradinha acenando para os jogadores, cochichando no ouvido do técnico. Queria muito mostrar o quanto são ridículos. Se meu filme conseguiu imprimir, ainda que toscamente, aquela perfomance, eles serão convidados a assistir o copião. Mas a verdade é que, assim como eu, a maioria de meus amigos estão filmando da arquibancada. Os nomes que estão impressos nos editais são os Nomes.

"Ah, então por isso é que ele tá torcendo contra", os que torcem a favor podem estar pensando assim nesse momento. Afinal, estou fora da jogada, estou cheio de rancor e de raiva. Mas eu posso dizer o seguinte: pelo menos eu ainda consigo sentir algo de paixão. Se estes pobres cineastas voltarem-se para as arquibancadas perceberão que a grande tônica do cinema nacional é a indiferença. A grande maioria está cagando pro que acontece. Tanto faz a vitória quanto a derrota. Agora vocês me dão licença que eu tenho que trocar o rolo.

Guilherme Sarmiento

CARTA
do leitor e colaborador Cezar Migliorin

Caro Eduardo,
Acabo de ler a critica sobre o Tudo é Verdade e concordo com algumas coisas e discordo de outras. Discordo sobretudo da crítica que fizeste ao Julliu's Bar. Não que eu tenha certeza da alta qualidade do filme como o Coutinho tem, ou o José Geraldo Couto, da Folha; não, talvez até tenhas razão, talvez o filme seja repetitivo e vazio. Minha discordância é metodológica.

Primeiramente a ambição do filme é fruto de uma curiosidade, do desejo de estar em um mundo através do cinema, fazendo um filme que aproxime tb. os espectadores, acho que o filme é feliz nesta entrada. Não me parece que o que v. chamou de ambição desqualifique o filme.

Aos 45 min. de filme há uma imagem que mostra a equipe, aos 48 há outra. Me parece que v. se apegou demais a isso, em poucas linhas isso aparece duas vezes como argumento para desaprovar o filme, para identificá-lo como um seguidor do Coutinho. Achei pouco.

Outra coisa, não me parece que o filme tenha a intenção de extrair "revelações" de seus entrevistados, esse papel fica para as reportagens - Documento Especial e Globo Repórter - No Julliu's Bar a questão é, justamente, apresentar a complexidade daquelas vidas.

Por que mostrar o quarto? Por que não mostrar? Por que é constrangedor? Por que nós devemos mostrar apenas o que é agradável e bonito? V. sabe que não. O quarto da India aparece aos 40 minutos de filme, acredito que até ali houve tempo e uma diversidade de situações para que entendêssemos que o personagem não é só aquilo, mas que , aquela pobreza tb. é parte da vida dela.

Como te disse, a questão é metodológica. Uma crítica pode ser mais aberta, sem transformar um elemento que desagrada o crítico em um resumo do filme todo. A crítica pode ter menos certezas e evitar comparações que desqualificam o crítico.

Abraços e, mais uma vez, parabéns pela revista.
Cezar Migliorin

Contracampo responde: Cezar, obrigado pelo email, antes de mais nada. É um prazer poder travar debate sobre os textos, nós da Contracampo mais do que abertos, incentivamos cada vez mais isso. Aprendi muito lendo teu texto, e estarei atento a uma série de coisas que vc menciona ali, e que são pertinentes. Me considero um iniciante no ofício, então nada melhor do que ter a humildade de ouvir.

Reconheço acima de tudo que há uma dificuldade nos críticos de, ao gostar de um filme (ou ao contrário, não gostar), tentar supervalorizar qualidades (ou defeitos) em detrimento de um olhar mais amplo. É um vício sério ao qual tento estar atento, mas que pode-se dizer que é quase uma tendência humana, pensemos no velho e sábio ditado "para quem ama, o feio, bonito lhe parece". Tendemos a diminuir defeitos do que gostamos e qualidades do que não gostamos.

Queria destacar somente que aquele tipo de texto em especial é sempre problemático por tentar globalizar um Festival, tendo cada filme portanto pouco espaço para argumentos mais profundos, o que fica completamente impossível de se prestar nestes "mega-eventos". Acho importante porém tentar este olhar maior, no qual queria lembrar minha principal tentativa não é fazer um texto crítico sobre cada filme (não considero que tenha "criticado" aqueles filmes), mas sim de olhar o Festival como evento, o que ele me passou ao ver a produção documental como um todo. Portanto, se neste tipo específico de texto se usa deste artifício de destacar alguns pontos em detrimento de outro é porque, como eu disse, não se trata de uma crítica de cada filme (seria ridículo pensar numa crítica de meio parágrafo) mas de uma tentativa de usar os filmes em detalhes como argumentos para um ponto mais total do que retiramos da mostra como um todo.

Mas, como profissionais da área devemos estar muito atentos a isso. E estarei, cada vez mais.

Em resposta mais direta quanto ao filme, só queria dizer que por estar diretamente na produção do filme, ainda mais como montador, que como sabemos é uma função onde vc pensa e repensa cada associação de imagens e sons feitas, algumas das coisas que vc menciona do filme acabam sendo mais intenções dos artistas envolvidos, que no produto final, recebido pelos olhos de um espectador não previamente informado de intenções, não são atingidas. (por exemplo, não acho o filme feliz na entrada no tal mundo novo)

Não acho o quarto da India constrangedor, acho apenas que dentro da linha de argumentação seguida pelo filme, não adiciona qualquer informação valiosa a ele ou ao espectador. É apenas mais uma informação. Faz parte da vida da India? Claro. Como tenho certeza que fazem parte da vida dela mais duas mil coisas que não estão no filme, porque afinal sabemos que um filme não tem a capacidade de dar conta da complexidade da vida, mostre ele o que mostrar. por isso, prefiro quando se tenta claramente montar um discurso, seja sobre o seu objeto seja sobre o próprio olhar do realizador. E, dentro do discurso daquele filme não acho aquela informação (sob qualquer aspecto) importante.

Por último, não concordo que um estudo de minutagem faz jus ao discurso cinematográfico. De acordo com a montagem final do material, um minuto só pode ter muito mais relevância que os outros 100. Um minuto pode merecer 3 páginas, enquanto os outros 100 só 1 parágrafo, se for o caso. Não sei se era o caso ali, pode ser que não. Mas não creio que (metodologicamente, como vc disse) este argumento seja válido genericamente. Como eu disse, ali podia ter uso ou não, podemos discutir. Mas, como artifício de argumentação não descarto a validade.

Isso tudo dito, Cezar, por favor, escreva mais e mais. Não tem a menor utilidade estar escrevendo no site se for apenas masturbatório. Queremos sempre ouvir e aprender muito, e acima de tudo cumprir alguma função com estes textos, dar a eles alguma permanência e retorno, e o teu é um exemplo disso. Obrigado, mesmo!

Um abraço
Eduardo
Valente