Panorama Nelson



Nelson Pereira dos Santos

Ao livro que escreveu para biografar Nelson Pereira dos Santos, Helena Salem deu o nome O Sonho Possível do Cinema Brasileiro. Poucos títulos seriam tão felizes. Se sonho parecia, no início dos anos cinqüenta, fazer cinema como queria o jovem Nelson, com teimosia e talento fez-se realidade. Sonhos tornados possíveis e dando lugar a novos sonhos foram a constante da carreira de um pragmático, que não raro adiou sonhos em nome de outros tornados possíveis.

Nelson Pereira dos Santos tem um mistério próprio como artista. Sempre se mostrou plenamente ligado com o que acontecia ao seu redor, mas mostrando as coisas com seu olhar sempre surpreendente. É dessa forma que se poderia entender El Justicero e Fome de Amor, sátiras aos seus pares, sátira ao mundo que o cerca.

Nelson é considerado por muitos o mais consistente e produtivo "autor de cinema" brasileiro, e da mesma forma foi em todos os momentos o defensor de um cinema "popular", muito próximo do discurso dos defensores da produção de cinema "industrial". Na entrevista publicada nesta edição, ao ser confrontado entre as duas opções, industrial versus autoral, apertou os olhos e comentou: "Mas isso é tão velho...".

Para o ainda jovem Nelson isto realmente já está velho. Fez cinema investindo nos mitos populares (O Amuleto de Ogum), fez cinema adaptando diversas obras de grandes escritores, fez cinema alegorizando os problemas ao seu redor (Azyllo Muito Louco), fez cinema registrando memórias da prisão quando terminava uma ditadura. Foi autor desde seu primeiro longa-metragem, Rio 40 graus, que inspirou toda a geração de autores que mais tarde o "cooptou" (termo usado por ele mesmo) para o seu movimento. Nos projetos seguintes demonstrava sua inquietação, produzindo o retrato que um amigo fazia do mundo em que foram ambos criados (O Grande Momento, de Roberto Santos) e mergulhando no universo da cultura do samba carioca (em Rio Zona Norte, já comentado por este escriba noutra edição da Contracampo). Muito mais tarde, foi novamente ao encontro do universo da música popular, dessa vez dos violeiros caipiras, já na época igualmente ignorados pelos sábios (Na Estrada da Vida). Soube identificar sempre o mundo que estava à margem do olhar de seus pares.

Na verdade, em que se pese a insistência na responsabilidade idealista de fazer o famoso "cinema popular", confirmada na entrevista dessa edição, quando nos diz que o cinema brasileiro precisa se voltar para milhões de pessoas que não assistem a filme algum, vale notar que, com todas as suas mudanças de percurso e transformações estéticas, dentro do panorama do cinema brasileiro Nelson Pereira dos Santos é talvez o autor de cinema mais coerente, possivelmente é o que mais se encaixa na definição de "autor de cinema".

Pois os seus filmes parecem ser, para si, um ritual a ser cumprido. Seu olhar está sempre destinado a compreender o mundo que o cerca, e seus filmes serão sobre o que está fora deste mundo, sobre o que não está percebido. São rituais porque, a partir de sua feitura, o tema passa a fazer parte de seu mundo. Nelson filma para fazer do olhar do outro parte de si, e por isso nenhum filme se inicia falando de seu mundo pessoal. Não são os espectadores que são apresentados a um fantástico universo pessoal, mas, ao contrário, são convidados a perceber algo que sequer compreendiam em sua visão. Dessa forma, o mundo do samba carioca, do sertão nordestino, das praias de Paraty, dos bicheiros da Zona Norte ou de Duque de Caxias, dos violeiros de São Paulo, da roça mineira ou da violenta capital federal, todos eles passam a ser parte de seu mundo.

Nelson Pereira dos Santos está por aí, está ativo, trabalhando com sua calma e sua teimosia, cheio de idéias e de vontade de aprender. Tem pouco mais de setenta anos, e tem planos de trabalho ainda e sempre ambiciosos – sonhadores e possíveis. Projetos simples e projetos complicados sendo tocados ao mesmo tempo, com calma de veterano e profusão de fazer inveja a iniciante.

Tantos artistas que precisamos celebrar, tornar novamente e sempre conhecidos de fato, Pixinguinha, Machado, o xará Nelson Rodrigues, seu amigo Glauber, Iberê Camargo, Dalton Trevisan, Joaquim Pedro, Jobim, João, Bandeira, Rosa, uma infinidade de ícones que precisariam ainda serem erguidos de fato para poderem ser contestados. Para todo artista brasileiro parecem faltar as flores em vida, como cantava outro gigantesco xará, Cavaquinho, e se queixava sempre Jobim, através de sua conhecida verve.

Mas Nelson Pereira dos Santos não quereria, não quer nem quererá flores em vida. Estas flores, é ele quem quer nos dar.

Esta pauta da Contracampo procura dar conta das opções e riscos de Nelson, olhando não através de suas obras consagradas mas sim a partir de seus filmes esquecidos. Porque, mesmo sendo experiências possivelmente incompletas (Cinema de Lágrimas, segundo o texto de Eduardo Valente nessa edição), rascunhos limitados pelas condições (Mandacaru vermelho e A terceira margem do rio, segundo o próprio autor) ou filmes pouco compreendidos à época e até hoje (El Justicero) – ou justamente por isso – elas nos revelarão muitos dos dilemas, intenções e interesses do autor. Não apenas como uma homenagem a ele, embora não houvesse demérito em sê-lo, mas principalmente para compreender como é possível dar vida aos sonhos no cinema brasileiro.

Daniel Caetano