Notas sobre o 6º Festival Brasileiro de Cinema Universitário



Numa Noite Qualquer de Gustavo Acioli

Durante três longos dias tive o prazer de acompanhar como membro do júri a mostra competitiva do VI Festival de Filmes Universitários. Antes de chegarmos aos 49 filmes presentes na competição, é importante destacar a seriedade, importância e vitalidade deste festival. Uma grande quantidade de jovens invadem o CCBB para verem filmes feitos por alunos de escolas de cinema espalhadas pelo mundo. Diretores, público e organizadores têm todos, em geral, menos de 25 anos, o que é realmente impressionante. Como essa garotada organiza um festival desse tamanho com tanta competência? Não sei como fazem, mas funciona. Todas as sessões tinham pessoas felizes por estarem no chão e não entre as dezenas que não conseguiram entrar.

Os filmes

O festival Universitário não faz qualquer seleção dos filmes que entram na mostra competitiva, o que resulta nesta grande quantidade de filmes - 49 - ao mesmo tempo em que permite que a heterogeneidade de gêneros, estilos e qualidade seja uma forte marca desta mostra. Gostaria aqui de destacar algumas características desta produção.

Documentários

Dentre todos os filmes exibidos, apenas 6 eram documentários; tendência contrária ao recente crescimento deste tipo de produção. Isto talvez aconteça pela opção que o festival faz em só aceitar filmes para a competição que estejam em película, de qualquer forma, o número de filmes deste gênero é bastante reduzido. Dentre os documentários apresentados gostaria de destacar três deles: Filme de Família, dirigido por Maya Pinsky, Pedaços de um Pedaço, roteiro e direção de Luciana Rodrigues e Cemitério de Elefantes, de Rodrigo Lorenzetti.

Filme de Família aponta para o tipo de experimentação que provavelmente começaremos a ver cada vez com mais freqüência entre os curtas. A diretora estabelece regras para construir uma situação, no caso uma família é escolhida aleatoriamente para que cada membro faça uma filme, e, utilizando câmeras digitais, finalização digital e kinescopia, Maya aproxima a família do ato de fazer cinema, ao mesmo tempo em que a experiência passa a ser reveladora do tipo de relação que acontece entre os membros da família. Muito mais do que trabalhar com questões de metalinguagem, o filme tem sua força em um voyerismo quase involuntário, revelador de estruturas e hábitos típicos da classe média. O filme trabalha a tela dividindo-a em diversos quadros, o que me pareceu uma ótima idéia para realizar o experimento que a diretora propunha, infelizmente a organização destes quadros que compõe a tela não é muito bem resolvida, enfraquecendo o filme esteticamente.

Pedaço de um Pedaço tem duas grandes qualidades: apostar na possibilidade das pessoas ordinárias contarem grandes histórias e mesclar, sem nenhum julgamento de valor, duas experiências de grupos bastante distintos unido-os espaço e temporalmente. O filme conta a história de jovens que formavam dois grupos de amigos, A Turma do Barão e a Refazendo. Grupos que apesar de viverem em um mesmo período na mesma cidade tiveram experiências muito diferentes. Colocando essas experiências lado a lado o filme traça um interessante painel do período e da diversidade sempre presente.

Cemitério de Elefantes é o mais ousado destes documentários. Não foi à toa que o filme gerou acalorado debate após a sessão. O filme documenta um ator que constrói um personagem de um bêbado e seus encontros com alcoólatras que vivem nas ruas do Brás, em São Paulo. Para construir o documentário, Lorenzetti colocou o ator dividindo o mesmo copo de cachaça com os seus personagens; bêbados sujos, de fala enrolada, pessoas terminais, como disse o diretor após a sessão. O encontro causa incômodo, primeiro porque o ator oferece cachaça a estas pessoas que já estão bêbadas, segundo porque a partir de um momento não sabemos mais se o ator está efetivamente atuando ou já está bêbado também, uma vez que o vemos tomando cachaça. Sem paternalismos, o filme entrega a estes homens que estão na rua a responsabilidade sobre suas vidas. Quer beber? Não é o filme que te impedirá. O mal estar é causado também pela proximidade que o filme nos coloca destas pessoas que estamos acostumados a ignorar. Não saímos do filme conhecendo as histórias pessoais ou os motivos que levaram aquelas pessoas à rua, mas isso não importa. Temos ali alterada uma relação que já estava estabelecida e isso, para um filme, é muito. O debate aconteceu porque uma parte da platéia e do júri acreditava que havia um certo desrespeito com os personagens do filme pelo fato de o documentário filmá-los sem que eles estivessem em suas plenas "capacidades de razão" (lembro que, segundo o diretor, todos autorizaram a filmagem), e também porque o ator lhes oferecia bebida. Sem dúvida, Cemitério dos Elefantes transita em um difícil limite ético, mas não me parece que o fato do filme existir possa ter aumentado o preconceito que temos com pessoas que se encontram nesta situação, pelo contrário, a proximidade do ator, personagem bastante mais próximo de "nosso mundo", com os alcoólatras, acaba por nos colocar em contato com os bêbados.

Humor

Uma ótima surpresa no festival foi a presença de um potente humor. Um humor construído de diversas maneiras; por vezes baseado em um excelente texto, como é caso de Testículos, de Christian Caselli. Testículos foi o único filme a ser aplaudido durante a sessão, sem dúvida um dos melhores filmes do festival. Caselli construiu uma situação - um encontro de amigos para um almoço onde o prato principal é testículos de boi, ou de touro - que poderia rapidamente perder seu potencial cômico, mas a neurose dos personagens, obcecados por questões irrelevantes, não para de nos surpreender durante os 14 minutos do filme. Assim como vários outros filmes do festival, Testículos faz uso de uma estética trash para falar de seu tema - também trash - mas, diferentemente de vários outros filmes, o que se vê aqui é uma perfeita adaptação entre a escolha da linguagem e seu tema. O trash é uma opção e não escape. Ainda no registro do humor trash, acho curiosa a experiência do filme Caixa de Sapato, de Marcelo da Veiga. O tédio, tema presente em vários dos filmes do festival, é tratado aqui com humor e com frases do tipo "acho que não vou me suicidar, vou é comer pipoca de microondas". O filme não tem o rigor de Testículos, mas sugere um tipo de filme que veremos com mais freqüência dada a presença das tecnologias digitais no cinema, ou seja, filmes feitos quase que por uma só pessoa, super-pessoais.

Arábia é outro filme que tem no humor o seu ponto alto. O filme é uma bem realizada paródia dos making-ofs televisivos, repleto de entrevistas com o diretor, o produtor, os atores e algumas cenas do filme que está sendo realizado. Arábica expõe, em tom exacerbado e debochado, as dificuldades de se filmar sem as pressões do mercado. Também aqui, como em Testículos, chama atenção como os atores são competentes e bem dirigidos.

Atores

Foi exatamente a qualidade dos atores e da direção destes atores que chamou a atenção do júri em Numa noite qualquer, de Acioly. Um bem humorado filme sobre um casal ordinário e a presença do filho bebê alterando a casa e os desejos. Os atores (Graciela Pozzobon e Paulo Tiefenthaler) impõem ao filme um ritmo e um tom muito distante do padrão televisivo que o cinema vem adotando, ao mesmo tempo em que as interpretações são repletas de pequenos detalhes corporais e faciais, o que torna o filme rico em sua simplicidade. A mesma qualidade na direção de atores existe em Macabéia, uma unanimidade. A atriz, Janine Corrêa, transita com suave delicadeza entre o cômico e o trágico, dando ao filme uma credibilidade que se instala na simpatia e no bom humor. A direção de arte deste filme também é prazerosamente bem cuidada e inspirada.

Alguma marcas

Em meio à heterogeneidade do festival, algumas especificidades estéticas e temáticas foram recorrentes. O tema mais freqüente nos filmes apresentados foi "a perda", alguma perda: de um amor, de um passado, de um futuro, de um sonho, de uma tradição, de um espaço, etc. Impressiona um ar nostálgico e desiludido presente em diversos filmes. Por si só esta relação com algo que se perdeu não gerou filmes bons ou ruins, mas me deixou a sensação de que ali o cinema é uma forma de relação com o passado, talvez os jovens cineastas de hoje seja nostálgicos dinossauros em tempos de internet e velocidade.

Esta forte relação com o passado levou vários dos filmes apresentados a recorrer à mais banal das saídas, o flashback linear, não uma profusão de presentes, mas o olhar do presente que sabe sobre o passado. Muitos dos filmes apresentados fazem uso deste recurso dramático. Na maioria das vezes trata-se de filmes fracos, mas, em Contatos, por exemplo, uma bem realizada comédia, o flash-back é o que destoa, o que joga o filme de volta ao clichê, o que, felizmente, não ofusca a qualidade de seu conjunto.

O cuidado com os créditos foi outra marca desta mostra. Créditos bem realizados, pensados e criativos. O problema aparecia na hora da articulação, imprescindível, entre crédito e filme. O competente Intestino Grosso, por exemplo, depois de uma belíssima abertura, perde o espectador durante pelo menos um minuto, o que é muito para um curta, tal é diferença rítmica e dramática entre os créditos iniciais e os primeiros planos do filme. Depois deste minuto o filme transforma-se em um bem narrado thriller, montado e fotografado com grande cuidado e técnica.

Dois Filmes

Finalmente, queria destacar os dois filmes que mais me chamaram atenção, filmes redentores pela coragem e pela postura criadora de seus diretores: A sintomática narrativa de Constantino, de Carlos Dowling e A primeira vida, de Flavio Dezorzi e Moira Toledo. O filme de Dowling trabalha com uma surpreendente construção de personagens quase surrealistas inseridos no realismo extremo de um supermercado. A opção de direção dos atores faz com que os protagonistas se mantenham nesta delicada linha entre o absurdo e a verossimilhança. O risco presente neste filme é extremamente sedutor, um experimentalismo conseqüente e competente. Inserido em um tipo de experimentalismo mais clássico, se é que se pode cometer tal contradição, está A primeira vida. Os cortes abruptos, a maestria na edição de som perturbadora, os gritos, a beleza da rude paisagem, a quase ausência dos personagens, tudo isso cria um filme estranho e presente. Fui pego de surpresa pelo filme e, dez dias depois, ainda me lembro com prazer dos vermelhos e das palavras sem destino ou direção. Há uma angústia não narrativa presente no filme que o torna muito forte.

Tempo e espaço me faltam para falar mais longamente de cada filme. Me parece relevante apenas destacar a liberdade de André Nascimento em Instante, a fotografia de Rogério Moraes em Verme das Horas, a poesia de Aurélio Aragão em Cá e Lá, a ousadia de Rafael Duarte em Licor de Arbusto, a relevância histórica de O catedrático do samba, a simpatia e eficiência de Você sabe quem, de Maria Clara Guim e os atores Plínio Soares e Ângela Barros em Tragédia Brasileira, de Camilo Gajardo.

Cezar Migliorin