Eu acho que vi um gatinho



A Última Sereia de Arthur Omar

Dentro da mostra "A Lógica do Êxtase" foi criada uma sessão chamada "Imagens do Êxtase", composta por 5 trabalhos em vídeo com durações variando dos 6 aos 17 minutos. Entre estes chama a atenção especialmente a relação entre os 3 trabalhos realizados por Omar dentro da série proposta pela grife de roupas M. Officer e o mais recente da sessão, chamado O Ursinho de Pelúcia.

São opostos em sua gênese e condição de produção. Enquanto a série é patrocinada, e Omar conta com uma série de luxos no trabalho (desde a edição, até a trilha, passando pelas próprias condições de captação e objetos de atenção – modelos e Naná Vasconcelos), na outra chama a atenção a pulsão emergencial e tosca de sua origem: um gato e um urso de pelúcia no chão de uma casa, tudo gravado quase sempre em tempo real, com som direto, sem sequer créditos trabalhados em computador. É claro que estas não são as principais diferenças, mas sem dúvida possuem um papel importante no conceito das duas obras. Mas, são opostas também nas propostas estéticas, e nas proposições. Opostas, sim, mas não contraditórias. Opostas no encaminhamento, complementares no ponto de chegada.

A série da M. Officer tira do conceito para o qual foi produzida (um desfile de modas) as forças motrizes do seu trabalho. Nela, através do uso da música (uma constante em seu trabalho), da recontextualização de todas as imagens, que são vistas em ângulos ou enquadramentos inesperados, em velocidades não reais, Omar busca a criação da obra de arte na sua concepção mais total, partindo do real, chegando à abstração. Seu trabalho cromático intenso e sua junção de sons e imagens cria alternadamente sentidos para um mesmo material inicial. Ele torna o mundo da moda algo de mítico, às vezes assustador e violento, muitas vezes extasiante e sensual. Mas sempre, algo muito diferente daquilo que vemos na passarela. Um espaço onde as imagens e sons tornam o banal algo de fenomenal. Cria sentidos como o tato e o olfato, que o audiovisual não pode reproduzir, a partir de imagens e sons. Recontextualiza todo o universo da "criação de beleza" que é, em essência, o mundo dos modelos e dos desfiles de moda. É um trabalho duplamente interessante, pois além de sua própria fruição (que ao contrário do que possam afirmar não é puramente estética, mas lida com sensações profundas do espectador, memórias e mitos não trabalhados na esfera do consciente), possui ainda a capacidade de, a partir de uma proposta de contrato, criar arte. Torna assim viva a questão do artista como trabalhador, como assalariado, sem com isso perder liberdade de criação e sem com isso perder a capacidade de impor o seu olhar à realidade.

O Ursinho de Pelúcia é um documentário de fato. O que, no caso de Omar, pode querer significar o oposto do que se pensa geralmente deste frase. É um documentário porque não é encenado, porque não está fora do mundo, porque acontece em tempo real? Não, acima de tudo é um documentário porque desnuda a alma humana, e não importa que para isso não utilize um só ser humano em cena. É um documentário sobre os descaminhos do desejo, sobre suas impossibilidades que, nem por isso impedem que sejam buscadas. Só é um filme sobre um gatinho e um ursinho de pelúcia pelos olhos de quem seja ainda uma alma muito pura, ou melhor, inumana. O que nós vemos durante os 16 minutos é um gato completamente tomado pelo prazer sensitivo do toque de um urso de pelúcia, tentando desesperadamente solucionar a pulsão sexual causada por aquela sensação, em busca literalmente de um orifício, ou mesmo de uma superfície agradável, em que depositar o seu tesão. É um documentário sobre todos nós. Se alonga angustiosamente ao longo de 16 minutos da completa impossibilidade deste projeto, que não impede de forma alguma que se continue tentando. Como todos nós, o gato só procura o orifício correto para receber nosso desejo, o que é algo de inexistente, sob qualquer olhar. E não, madames, a metáfora não é puramente masculina. Substituam gato por gata e orifício por superfície, e releiam tudo de novo, por favor. Só não sabe da verdade disso quem nunca viu uma gata (aquelas de quatro patas) no cio, esfregando-se em qualquer coisa que veja pela frente.

Não se trata de uma imagem do êxtase como as da M. Officer. Trata-se do descontrole do desejo, trata-se de uma imagem de desespero, mas também de extrema tranquilidade. De perceber que não está no orifício ou no gozo final o ápice, e sim na busca incessante por este. Com um close no rosto do gato, vemos a expressão mais humana do prazer não conquistado, prazer este que afinal não seria conquistado mesmo com um ou com dez mil orifícios. Porque sempre haveria um próximo urso, ou uma próxima incompletude, o que não impediria jamais a procura do inatingível.

A grande sacada de Omar é perceber que este mesmo filme, se feito sobre um ser humano (e O Fantasma logo vem à mente), seria insuportável ao olhar de todos. Porque ao gato não se pode criticar por atender aos seus instintos mais básicos, por ser incapaz de resistir ao estímulo do pêlo macio do ursinho. Então, faz-se um vídeo sobre um gato, e ele pode até ser exibido no respeitável CCBB. E boa parte da platéia se sente confortável para assistir os 16 minutos deste autêntico "divertissement" sexual. Feliz de quem pode não se ver refletido naquele gato, porque, afinal, pode ser doloroso ser humano como ele. Mas, certamente, só vale estar vivo se for para ser humano. Como ele.

Eduardo Valente