Discreto
caminhar por entre as gentes
Acerca de Cá e Lá e Bumba
Cá
e Lá
de Aurélio Aragão
Pequenos personagens, seja o menino, seja
o homem – caminham em direção ao quase nada. Se o gesto
pesado do Homem, que leva adiante a grande roda...parasse! Mas continua.
Como o menino continua a caminhar... Chão de Brasília, chão
distante, ao fundo vasto – como um discreto caminhar por entre as gentes...
Dança na sombra o boi Bumbá sobre o menino. Dança
em ladeira abaixo o frevo sem compasso...
Como no frevo de um guarda-chuva negro, como
na sombra gigantesca do Bumbá, como no corpo pequenino do menino
– que leva o boi de barro em suas mãos. Há sempre um gesto
sutil e um momento. Sempre uma festa, um ritual de dançarinos,
sempre um espaço em que na fresta da imagem, o sol parece vir tocar
os personagens. Como na vã celebração de nossas vidas,
como a risada numa triste procissão – como girar sozinho em torno
de si mesmo...e se inventar reinventando o mesmo sol.
* * *
Um dos destaques do último Festival
Brasileiro de Cinema Universitário, o grupo brasiliense de cinema
Cabeçasol, chegou à Mostra competitiva trazendo 5 curtas
na bagagem. Realizados sob uma espécie de cooperativa, em que diretores
e produtores dividiram-se na realização de todos os filmes,
chegando a bancar parte dos filmes com dinheiro próprio, os curta-metragens
do Cabeçasol marcaram forte presença também na premiação,
ganhando o prêmio de Expressão Poética com o filme
Cá e Lá de Aurélio Aragão.
Embora tenham sido muito enxergados (e inclusive
premiados) como um bloco unívoco de curtas que privilegiariam a
linguagem poética em suas narrativas, os filmes do Cabeçasol
têm seu maior destaque devido a dois de seus cinco filmes: um deles
é o premiado Cá e Lá, de Aurélio Aragão;
o outro, é o filme Bumba, de Roberto Robalinho – dois trabalhos
consistentes que merecem ser tratados com maior cuidado e menos superficialidade:
* * *
Ondulando entre a alegoria melancólica
de um Fellini e a ironia social-surrealista de um Buñuel, os filmes
de Aurélio e de Roberto são extremamente singulares na firmeza
delicada com que projetam o lirismo de seus personagens...Traçando,
dessa forma, uma fina linha entre o retrato social (as imagens de Bumba
são mais marcantes nesse aspecto) e a reinvenção
poética dessa realidade. Uma reinvenção não
calcada na fuga sublimatória, mas na integração de
um espaço de sonho e de realidade incapazes de se desconectar –
numa alegria e numa tristeza constantes que se perseguem e que perseguem
os personagens: seja o menino de Bumba, seja o homem de Cá
e Lá. Cada qual em sua própria caminhada.
Bumba – O aspecto técnico
que mais chama a atenção em Bumba é com certeza
a integração entre montagem e trilha sonora. Robalinho,
que também montou o filme, consegue estabelecer um significativo
diálogo entre movimento e musicalidade: associando os gestos curtos
do menino e a dança ondulatória do Bumbá – como uma
espécie de duelo lírico onde o movimento de um puxa o movimento
do outro.
A utilização do Boi Bumbá
como ícone do imaginário de um menino, que, segundo a sinopse
do filme "quer ser um boi ", é um contraponto ideal em
relação à cidade de Brasília e também
uma bela alegoria de renovação: o boi Bumbá, no folclore,
é o animal que leva a estrela de Belém na testa e que, como
o menino do filme, morre e renasce a cada folguedo. Essa idéia
de renascimento, de renovação parece ser um dos eixos do
filme, esse desejo do menino de poder ser boi e começar de novo.
Em sua caminhada por Brasília, ele observa camelôs e brinca
com outras crianças – de repente, "brinca de morrer"!
Deita-se num carrinho e começa a ser puxado... Em seguida, Bumbá
aparece, seguindo a procissão do menino que, morre de brincar de
renascer...
Essa utilização de elementos
da cultura dos folguedos nacionais através de uma releitura pessoal
e específica é uma das coisas mais interessantes em Bumba
– não se pretende defender a cultura dita popular, ou retratá-la...
Utiliza-se de elementos dessa cultura para a criação de
uma fábula outra, de um renascimento de seus mesmos elementos.
Embora a "morte"do menino ao final do filme possa parecer uma
derrota, ou uma entrega de pontas, minha é leitura é totalmente
outra: a morte do menino é por dentro do próprio sonho do
menino, é sua própria transformação em boi
Bumbá – é um brincar de estar-se morto, não um final.
Um filme simples, de imagens simples – uma canção pequena
de um olhar ao mesmo tempo crítico e mágico.
Cá e Lá – Uma
subida sem sentido rumo a um lugar nenhum distante: Cá e Lá
se baseia no mito grego de Sísifo: considerado o mais sábio
dos mortais e condenado (por sua ambição em saber tudo e
tão pouco realizar) a rolar incessantemente um rochedo montanha
acima... Chegando ao topo, o rochedo rolava novamente (por seu próprio
peso) ao pé do monte – fazendo do ato de Sísifo um ciclo
sem fim ou início...
Em Cá e Lá o que vemos
é um homem solitário, diante de uma vasta ladeira, a rolar
montanha acima uma enorme roda de madeira... Seu martírio é
justamente o seu sem-fim. Um ciclo de vida infinita, em lentas passadas.
Um levar de vida adiante...sem um adiante! O homem passa friamente pela
paisagem, por homens que jogam cartas, por um casal de velhos...até
encontrar uma jovem:
Vestida de preto ela o pega pelo braço
e o homem, encantado, deixa rolar ladeira abaixo a sua roda... O homem
caminha num alívio quase feliz, a subida continua, como se naquela
jovem houvesse algum sentido para a sua subida...De repente ele pára.
Diante dele, uma multidão de guarda-chuvas caminham. Como que encantado
pela tristeza, ele larga a mulher e se junta ao grupo – a sua procissão
agora é um martírio de movimentos marcados. A procissão
se segue... Aos poucos, porém, seus movimentos contidos vão
tomando vida, vão se agitando – aos poucos o guarda-chuva negro
se agita. O homem começa a improvisar uma dança desengonçada
e a procissão se torna um descompassado frevo... Embebido pela
festa, pela dança, o homem desce novamente sua ladeira...
Nesse momento é que toda a ambigüidade
de sua caminhada é mais explícita – onde a alegria expontânea
da dança parece estar em descompasso com o redor, em que o homem
dança feliz com um guarda-chuva negro. A festa com a tristeza nas
mãos, esse é o instante. A festa que o leva novamente ao
início de tudo mas que é ainda assim a festa, a alegria
de novamente recomeçar – com uma alegria advinda não se
sabe de onde e com uma tristeza que não quer deixá-lo enfim.
Um movimento único de celebração da vida e da morte:
um retorno ao pé da mesma ladeira íngreme. Nessa mistura
entre mito e festa – onde a música tem papel central: é
ela que dá-nos o ar do estranhamento, é ela que, diante
daquelas imagens de alegria, parece nos remeter a uma tristeza – como
se ela mesma fizesse uma festa. Embora se dance, há sempre uma
sombra de velório em cada imagem – embora se pareça triste
há sempre uma sombra de alegria em cada gesto... Uma festa melancólica,
uma procissão festiva. Bebendo da cultura folclórica brasileira
essa mistura entre festividade e choro, e retomando o mundo cíclico
grego nesse sem-fim de caminhar, o filme de Aurélio encanta sutilmente
aos olhos e aos ouvidos. Deixando escapar de sua prisão cíclica,
uma espécie delicada de esperança. Um sopro tímido
de vida e de tristeza.
* * *
Ambos os filmes são exercício
mudos, de sonoridade fortemente calcada na música. De produção
e realização simples – feitos à luz natural do sol
de Brasília. Renovação e recomeço, Sísifo
e Bumbá. Dois filmes com uma delicada absorção de
elementos da cultura folclórica brasileira, transformando-a em
pequenas e novas idéias – frágeis como a vida de que falam.
Felipe Bragança
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