Discreto caminhar por entre as gentes
Acerca de Cá e Lá e Bumba



Cá e Lá de Aurélio Aragão

Pequenos personagens, seja o menino, seja o homem – caminham em direção ao quase nada. Se o gesto pesado do Homem, que leva adiante a grande roda...parasse! Mas continua. Como o menino continua a caminhar... Chão de Brasília, chão distante, ao fundo vasto – como um discreto caminhar por entre as gentes... Dança na sombra o boi Bumbá sobre o menino. Dança em ladeira abaixo o frevo sem compasso...

Como no frevo de um guarda-chuva negro, como na sombra gigantesca do Bumbá, como no corpo pequenino do menino – que leva o boi de barro em suas mãos. Há sempre um gesto sutil e um momento. Sempre uma festa, um ritual de dançarinos, sempre um espaço em que na fresta da imagem, o sol parece vir tocar os personagens. Como na vã celebração de nossas vidas, como a risada numa triste procissão – como girar sozinho em torno de si mesmo...e se inventar reinventando o mesmo sol.

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Um dos destaques do último Festival Brasileiro de Cinema Universitário, o grupo brasiliense de cinema Cabeçasol, chegou à Mostra competitiva trazendo 5 curtas na bagagem. Realizados sob uma espécie de cooperativa, em que diretores e produtores dividiram-se na realização de todos os filmes, chegando a bancar parte dos filmes com dinheiro próprio, os curta-metragens do Cabeçasol marcaram forte presença também na premiação, ganhando o prêmio de Expressão Poética com o filme Cá e Lá de Aurélio Aragão.

Embora tenham sido muito enxergados (e inclusive premiados) como um bloco unívoco de curtas que privilegiariam a linguagem poética em suas narrativas, os filmes do Cabeçasol têm seu maior destaque devido a dois de seus cinco filmes: um deles é o premiado Cá e Lá, de Aurélio Aragão; o outro, é o filme Bumba, de Roberto Robalinho – dois trabalhos consistentes que merecem ser tratados com maior cuidado e menos superficialidade:

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Ondulando entre a alegoria melancólica de um Fellini e a ironia social-surrealista de um Buñuel, os filmes de Aurélio e de Roberto são extremamente singulares na firmeza delicada com que projetam o lirismo de seus personagens...Traçando, dessa forma, uma fina linha entre o retrato social (as imagens de Bumba são mais marcantes nesse aspecto) e a reinvenção poética dessa realidade. Uma reinvenção não calcada na fuga sublimatória, mas na integração de um espaço de sonho e de realidade incapazes de se desconectar – numa alegria e numa tristeza constantes que se perseguem e que perseguem os personagens: seja o menino de Bumba, seja o homem de Cá e Lá. Cada qual em sua própria caminhada.

Bumba – O aspecto técnico que mais chama a atenção em Bumba é com certeza a integração entre montagem e trilha sonora. Robalinho, que também montou o filme, consegue estabelecer um significativo diálogo entre movimento e musicalidade: associando os gestos curtos do menino e a dança ondulatória do Bumbá – como uma espécie de duelo lírico onde o movimento de um puxa o movimento do outro.

A utilização do Boi Bumbá como ícone do imaginário de um menino, que, segundo a sinopse do filme "quer ser um boi ", é um contraponto ideal em relação à cidade de Brasília e também uma bela alegoria de renovação: o boi Bumbá, no folclore, é o animal que leva a estrela de Belém na testa e que, como o menino do filme, morre e renasce a cada folguedo. Essa idéia de renascimento, de renovação parece ser um dos eixos do filme, esse desejo do menino de poder ser boi e começar de novo. Em sua caminhada por Brasília, ele observa camelôs e brinca com outras crianças – de repente, "brinca de morrer"! Deita-se num carrinho e começa a ser puxado... Em seguida, Bumbá aparece, seguindo a procissão do menino que, morre de brincar de renascer...

Essa utilização de elementos da cultura dos folguedos nacionais através de uma releitura pessoal e específica é uma das coisas mais interessantes em Bumba – não se pretende defender a cultura dita popular, ou retratá-la... Utiliza-se de elementos dessa cultura para a criação de uma fábula outra, de um renascimento de seus mesmos elementos. Embora a "morte"do menino ao final do filme possa parecer uma derrota, ou uma entrega de pontas, minha é leitura é totalmente outra: a morte do menino é por dentro do próprio sonho do menino, é sua própria transformação em boi Bumbá – é um brincar de estar-se morto, não um final. Um filme simples, de imagens simples – uma canção pequena de um olhar ao mesmo tempo crítico e mágico.

Cá e Lá – Uma subida sem sentido rumo a um lugar nenhum distante: Cá e Lá se baseia no mito grego de Sísifo: considerado o mais sábio dos mortais e condenado (por sua ambição em saber tudo e tão pouco realizar) a rolar incessantemente um rochedo montanha acima... Chegando ao topo, o rochedo rolava novamente (por seu próprio peso) ao pé do monte – fazendo do ato de Sísifo um ciclo sem fim ou início...

Em Cá e Lá o que vemos é um homem solitário, diante de uma vasta ladeira, a rolar montanha acima uma enorme roda de madeira... Seu martírio é justamente o seu sem-fim. Um ciclo de vida infinita, em lentas passadas. Um levar de vida adiante...sem um adiante! O homem passa friamente pela paisagem, por homens que jogam cartas, por um casal de velhos...até encontrar uma jovem:

Vestida de preto ela o pega pelo braço e o homem, encantado, deixa rolar ladeira abaixo a sua roda... O homem caminha num alívio quase feliz, a subida continua, como se naquela jovem houvesse algum sentido para a sua subida...De repente ele pára. Diante dele, uma multidão de guarda-chuvas caminham. Como que encantado pela tristeza, ele larga a mulher e se junta ao grupo – a sua procissão agora é um martírio de movimentos marcados. A procissão se segue... Aos poucos, porém, seus movimentos contidos vão tomando vida, vão se agitando – aos poucos o guarda-chuva negro se agita. O homem começa a improvisar uma dança desengonçada e a procissão se torna um descompassado frevo... Embebido pela festa, pela dança, o homem desce novamente sua ladeira...

Nesse momento é que toda a ambigüidade de sua caminhada é mais explícita – onde a alegria expontânea da dança parece estar em descompasso com o redor, em que o homem dança feliz com um guarda-chuva negro. A festa com a tristeza nas mãos, esse é o instante. A festa que o leva novamente ao início de tudo mas que é ainda assim a festa, a alegria de novamente recomeçar – com uma alegria advinda não se sabe de onde e com uma tristeza que não quer deixá-lo enfim. Um movimento único de celebração da vida e da morte: um retorno ao pé da mesma ladeira íngreme. Nessa mistura entre mito e festa – onde a música tem papel central: é ela que dá-nos o ar do estranhamento, é ela que, diante daquelas imagens de alegria, parece nos remeter a uma tristeza – como se ela mesma fizesse uma festa. Embora se dance, há sempre uma sombra de velório em cada imagem – embora se pareça triste há sempre uma sombra de alegria em cada gesto... Uma festa melancólica, uma procissão festiva. Bebendo da cultura folclórica brasileira essa mistura entre festividade e choro, e retomando o mundo cíclico grego nesse sem-fim de caminhar, o filme de Aurélio encanta sutilmente aos olhos e aos ouvidos. Deixando escapar de sua prisão cíclica, uma espécie delicada de esperança. Um sopro tímido de vida e de tristeza.

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Ambos os filmes são exercício mudos, de sonoridade fortemente calcada na música. De produção e realização simples – feitos à luz natural do sol de Brasília. Renovação e recomeço, Sísifo e Bumbá. Dois filmes com uma delicada absorção de elementos da cultura folclórica brasileira, transformando-a em pequenas e novas idéias – frágeis como a vida de que falam.

Felipe Bragança