Cinema se aprende na escola



Mouchette de Robert Bresson

Cinema se aprende na escola? Artes plásticas se aprende na faculdade? Teatro? Literatura? Não dá para ter certeza, mas os cursos superiores existem, e neles, aulas são dadas, pessoas se formam, alguém diz que aprende algo sobre essas matérias.

Essa é uma discussão complicada. Achar que a arte é simplesmente capacidade pessoal não adquirida, não treinada, recebida por um número muito pequeno de capazes na hora do nascimento não faz desses cursos dispensáveis. Ver a arte apenas dessa forma é mais uma maneira de não compreendê-la na sua totalidade. A genialidade precisa ser reconhecida. Ela não aparece simplesmente e é notada por ser genial. Saber distinguir é saber apreciar e a formação artística é a única que pode preparar os interessados para apontar o que é bom. Essa formação, é claro, pode ser adquirida fora de qualquer instituição, mas nunca aparece de repente para uma pessoa.

É um processo longo e ininterrupto que exige demais de quem está disposto a levá-lo a sério e conhecer alguma coisa, mas tem a vantagem de não ser excludente. Todos podem seguir esse caminho sem ter que assumir um contrato de dedicação exclusiva. A academia, a faculdade, é mais um caminho, tão válido quanto qualquer outro. O espaço acadêmico concentra a atenção no objeto artístico que estuda. Não impossibilitando a discussão fora dos seus limites, é o lugar mais adequado à briga, à agitação. Supostamente, é lá que a reflexão teórica é incentivada e assim se alargam as fronteiras da compreensão dessa arte. A função maior da faculdade é formar quadros capazes de fazer a arte evoluir conceitualmente para que ela seja realmente compreendida e assim continuar existindo como arte.

Para fazer cinema não é necessário freqüentar uma faculdade de cinema. Pode ser uma de medicina, direito. Filme se compra. Câmera se aluga. Idéias todo mundo tem. Desde que se saiba o que se está fazendo, desde que o cinema pensado e realizado seja realmente fruto de uma proposta estudada, bem intencionada artisticamente, não há impedimento algum para sua feitura. Porém, essa preocupação quase heróica com o cinema é muito mais facilmente encontrada nas escolas, e não é apenas isso, pois lá, a técnica é também trabalhada e vinculada às teorias que permitem a sua correta utilização.

Fazer um curso de cinema em uma faculdade não é para qualquer um. Com tantas opções, escolher essa carreira incerta exige no mínimo paixão. A atual valorização do cinema nacional apenas contribuiu para fazer crescer a ilusão de romantismo em torno da classe cinematográfica, o que não corresponde à realidade. A imagem que se tem do cineasta, ligada sempre ao glamour, levando uma vida coberta de realizações, reconhecimento e utilidade está longe se tornar possível para quem quer viver de cinema sem que este seja obrigado a lutar muito, estudar demais e perseverar bastante. Pode ser uma vida divertida, algumas vezes, mas não é nada fácil, o que faz com que uma faculdade de cinema seja o lugar mais propício para se encontrar um número considerável de pessoas comprometidas e preocupadas com o esclarecimento do fenômeno audiovisual.

A maneira como a sociedade vê a universidade mudou e continua mudando. O que ela deseja desse tipo de instituição é o que confere ao ensino a sua cara. Em um mundo técnico-científico objetivo, cada vez menos aberto a mudanças de paradigmas, a universidade acompanha a busca pelo imediato deixando de priorizar a sua vocação crítica e se concentrando no ensino voltado para a aplicação direta no cotidiano social. Essa tendência não aparece somente nos curso objetivos por natureza, mas vem se espalhando por todas as áreas do conhecimento, incluindo, é claro, o cinema universitário. É uma guinada que não deve ser justificada apenas colocando-se a culpa na instituição. Muito antes disso, é o resultado dos valores que carregam os próprios alunos. A objetividade cobrada de todos para adaptação ao mundo faz parte também da vida de qualquer estudante.

Quando arte, no caso cinema, passa a ser considerado mais um entre tantos objetos de aplicação objetiva isso representa um problema. Sem querer entrar na discussão do papel da arte e de sua inserção no mundo do consumo, fica claro que o horizonte social, cada vez menos voltado para a subjetividade, experimentação e liberdade, não combina muito com as intenções da Arte.

Mas a origem dessa discrepância não surgiu agora. É fato que o cinema, a forma de arte com maior apelo popular e mercadológico, é parte integrante do mundo do consumo. Ele é a arte com dupla personalidade, sempre transitando entre arte-pura e mercado, o que afrouxa o debate sobre suas possibilidades fora desse eixo.

Surge então uma questão simples: Se for para consumir, vamos consumir algo ruim? Não, claro que não. E já que é cinema, é arte, a única maneira de se evitar o consumo ruim é entender, analisar, criticar. Produções com alto nível artístico só vão aparecer para consumo se for feito um esforço nesse sentido, do contrário, cinema, como já acontece, é apenas produto desinteressante que se compra apenas e não se usufrui.

A existência da Academia se justifica desse modo. É lá que as questões, tão relevantes para qualquer aprimoramento, devem ser colocadas. Funcionando como um campo aberto para a experimentação de linguagem e o estudo teórico construtivo a faculdade tem importância. A responsabilidade dessa cruzada em busca da total compreensão da arte não é apenas dos acadêmicos, mas eles são os únicos que não têm comprometimento com outra causa além desta.

Cinema na universidade é vital para o seu próprio desenvolvimento. O debate que lá ocorre tem poder de gerar conhecimento suficiente para colocar em xeque essa necessidade de consumo a qual está atrelado ou então confirmá-la. Seja qual for a escolha, ela tem que ser pensada e discutida até o esgotamento antes de virar uma conclusão. A faculdade é um possível caminho para se chegar à essência do que é o Cinema, ajudando-o a encontrar a sua verdadeira vocação nesse mundo confuso que talvez não saiba ainda muito bem o que fazer com ele.

João Mors Cabral