Arthur, Omarketing



Arthur Omar em Notas do Céu e do Inferno de Arthur Omar

O que exatamente constitui uma carreira artística? No mundo de hoje, certamente a palavra tem outros significados que não apenas o do criador idealizado, distanciado do mundo material. É um tempo de venda, de relações comerciais, e também de propaganda, de marketing. Um tempo em que o que se fala de uma obra acaba sendo mais importante do que ela mesmo, muitas vezes. Arthur Omar é louvado como o artista moderno por excelência pela mídia brasileira. "Multimídia" é o termo mais usado (embora, ele mesmo descarte). Um homem que mistura vídeo, música, cinema, fotografia, artes plásticas, teatro, que desafia a fronteira entre as artes. Tudo isso pode ser discutido, como aliás o foi exaustivamente no evento que o homenageou no CCBB. No entanto, não é isso que faz de Omar um artista moderno, principalmente. O fato mais impressionante sobre sua carreira é que ele é um artista muito mais falado do que conhecido. O que é fruto de algumas injustiças e distorções dos meios artístico e jornalístico, mas também de uma própria mitologia criada pelo artista em torno de si.

Quando sai um artigo na revista Cahiers du Cinéma sobre o cinema brasileiro atual, e Omar é citado como uma das principais figuras em atividade, é o caso de levantar-se as sobrancelhas e dizer (nas palavras do querido Didi Mocó): "Cuma?" Sim, porque levando-se em conta todas as discussões mais atuais em torno do que seja uma obra cinematográfica, em tempos de produção digital, das diferenciações entre bitolas, etc, ainda assim é no mínimo surpreendente ler que um artista que ao longo da década de 90 não teve um só trabalho produzido ou exibido em película ou numa sala de cinema comercial seja um dos mais importantes do cinema local. Independente da qualidade de sua obra, a pergunta que se faz é: que influência é esta de uma obra não vista? Que influência é esta de uma obra não exibida, por assim dizer, "cinematograficamente"? Seja em termos dos cineastas, seja em termos do público, como pode ser esta uma obra destacada na década? Se não o público nem o meio cinematográfico, o que pode ela influenciar e com o que dialoga no "cinema" em si ( o artigo afinal estava na Cahiers e era sobre o cinema brasileiro)?

A explicação mais rasa, que relaciona a autora do artigo como principal divulgadora, curadora e produtora do artista (além de sua esposa), é importante para a compreensão do fenômeno, mas não nos parece a mais profunda conclusão. O principal fato que isso indica é que nos tempos modernos, a obra pode sim ser influente sem ter uma existência social. Ou seja, a arte não precisa mais ser vista para ser importante. Basta a ela existir, e acima de tudo, ser marketeada, ser trabalhada. Se as pessoas certas (jornalistas, críticos) tiverem acesso a este trabalho, voilá, está garantida a eternidade do trabalho.

Claro que em parte este círculo não é culpa do artista, jamais. Assim como Omar não é exibido no Brasil, não são vendidos álbuns de grandes nomes da música, que são lançados no exterior, pianistas clássicos saem do país, etc. Ser, portanto, desconhecido do público em seu próprio país não é uma deformação que parta do artista, jamais. O que impressiona no caso de Omar, porém, é como ele consegue pegar este desconhecimento e, ao invés de um marginal ou um "outsider" típico, tornar-se um ícone, quase pop. O pop, no caso, não vem de popular.

Quem esteve presente a alguns dos eventos da mostra em sua homenagem (que, aliás, representa uma chance real de sua obra interessantíssima ser vista) conseguiu entender como isso acontece. No ciclo de debates sobre ela, todos os principais teóricos de seus campos deram o seu aval ao trabalho sem fronteiras de Omar, garantindo com isso a permanência histórico-teórica do mesmo. Já o catálogo da mostra, uma obra de arte em si mesmo, conferiu uma metáfora interessante desta situação, pois não ficou pronto a tempo da mostra, sendo lançado no dia em que ela acabava. Ou seja, ninguém viu, mas todo mundo sabe que era genial. O que pode ser parte do que se diga dos trabalhos de Omar antes desta mostra (e que, no panorama geral, continua sendo fato).

Mas o "happening" mais explicativo deste fenômeno se deu no dia 10/06, quando Omar "lançou" seu último trabalho, uma reedição de imagens da sua instalação Fluxos, que dava origem a um novo trabalho chamado "Tesouras sobre a mesa", para uma exposição em Valencia. Neste dia, Omar esteve no CCBB, quando o trabalho era exibido ao público, no foyer do local. Só que o espetáculo não consistiu apenas das imagens em vídeo na tela, mas de Omar na frente delas, como um misto de narrador-compulsivo e chapeleiro-louco, obsessivamente explicando cada uma daquelas imagens, contextualizando, significando, destrinchando símbolos e metáforas. O que pode, se descrito, parecer uma interessante visão do fenômeno artístico, com a preocupação dedicada à fruição e compreensão do público, quando visto de perto, ganhavam contornos muito diferentes. Porque havia uma câmera filmando aquilo tudo (aparentemente tudo que concerne Omar é gravado em vídeo e pode virar arte em algum momento), e a performance era de fato para esta câmera. O público estava ali como mero figurante de um espetáculo onde os protagonistas eram a obra mas, acima de tudo, o artista. Não havia diálogo, era um compulsivo monólogo onde o artista destrichava cada corte, cada som, falava como uma máquina, colocando para fora conceitos e mais conceitos, enquanto obra e espectador, e acima de tudo, a relação entre os dois, o seu momento de contato, parecia ser menos importante que o artista, seu discurso, e sua gravação em vídeo do momento.

Era uma repetição da abertura da mostra ou da discussão de qualquer sessão que tivesse Omar presente. Ele falava compulsivamente numa desarticulação extremamente articulada sobre cada trabalho, explicava cuidadosamente o que queria ou não dizer com ele. Era ele, de fato e pessoalmente, a instalação. O espectador não possui mais o direito do contato virgem com aquela obra, de uma significação nova sua, mas apenas os múltiplos símbolos e objetivos do artista. Não existe mais "a obra", mas sim "o artista". A mediação dela é feito por ele, sempre, onipresente, falando, falando, falando. Nos convencendo da importância daquilo que ainda nem desfrutamos. A obra não é descoberta pelo público, e a partir daí torna-se um referencial, um marco. Ela é antes um marco, um referencial, e depois apresentada ao público como tal.

Traçando um painel a partir destes fenômenos é mais fácil perceber que se o artista Arthur Omar continua parecendo mais importante que sua obra não é apenas por uma injustiça (real) do meio artístico e de comunicação. Mas, também o é por uma opção de carreira, divulgação e postura do mesmo. Que inegavelmente, funciona. Palmas para ele. E que transforma sua trajetória pessoal na sua obra, no seu legado mais importante. Uma injustiça que ele mesmo comete com seu ótimo trabalho, e cuja imagem-síntese é a de Omar com seu charuto numa banheira de espumas, num exemplar de Casa Cláudia. A vida é a arte, a arte serve à vida. Arthur, o marketing, não é só o mais moderno dos artistas brasileiros por ser multimídia ou qualquer coisa do gênero. Mas, acima de tudo, por preceder sua própria obra em importância.

Eduardo Valente