Algumas observações sobre o cinema de A.O.



Jamil Warwar é O Inspetor de Arthur Omar

1. Crença e descrença no cinema. O cinema de Arthur Omar parte de um ceticismo primeiro em relação ao registro cinematográfico. Como filmar a experiência real e trazê-la à tela? Parece ser a pergunta que dirige todos os seus curtas-metragens até o longa Triste Trópico, experiência privilegiada da investigação sobre verdade e mentira não no sentido extra-moral, mas no registro cinematográfico. Mas A.O. faz mais do que isso: sabe que há uma fissura que um documentário usual não pega, que há algo que reside na experiência sensível que é irredutível ao discurso do registro, seja ele literário, cinematográfico, auditivo, etc. A.O. chega logo a essa conclusão: a experiência vivida é infilmável. Mas o que fazer com esse dado? Desistir do cinema? Não. O cinema de Arthur Omar do começo até O Inspetor desenvolve-se a partir de dois princípios: o primeiro consiste em negar ao espectador aquilo que ele imaginaria buscar num documentário – um romance modernista, um movimento histórico, um ciclo musical, uma festa popular viram nome de filme mas o filme jamais vai nos dar informações ilustrativas a respeito deles - e o segundo trata de realizar uma tarefa positiva: depois de negar a experiência original (Oswald de Andrade, a congada, a conjuração baiana, música "barroca" mineira), é questão de dar ao espectador outra experiência, a experiência própria do cinema – ficcionalizar, seduzir, não mais através de uma raiz documental, mas pelos meios de encantamento próprios ao cinema: personagens, luzes, registros de arquivo, e sobretudo aquilo que pauta e dá consistência a toda sua produção: o som.

2. Mas fixemo-nos nos dois pólos principais da obra de A.O. A primeira tarefa, negativa, diz respeito à representação. Ora, é justamente a idéia de que ao documentar-se alguma coisa se está representando alguma coisa, que se está mantendo uma memória, que faz agir o mecanismo A.O. Se na filosofia a representação entra em crise no final do século XIX, no cinema documental1 brasileiro é Arthur Omar nos anos 70 que denuncia essa crise e sistematiza procedimentos para "barrar" a representação: cartelas com inscrições nos revelam dados sobre cada tema tratado, mas justamente para nos negar uma exposição plácida, "verdadeira" de cada conteúdo cultural tratado nos filmes de Omar. Essa tendência "realista" do cinema é justamente aquilo que a função-A.O. faz questão de cassar. Uma profunda melancolia inicial ao assistir seus filmes. O chão nos falta. Não só duvidamos daquilo que vemos em seus filmes, mas a partid daí duvidaremos de tudo que nos for mostrado como "a verdade". Seus filmes como que falam: "É? Você quer assistir, você quer descobrir mais acerca da congada, acerca de Serafim Ponte Grande, você espera uma didática, um pequeno resumo condescendente, institucional? Pois bem, isso eu não dou,..."

3. "...mas em compensação, eu te dou ISSO." O isso é o trabalho positivo de sua obra, que está presente desde seus primeiros filmes: o processo de mexer com o artifício – o disfarce, a prestidigitação como os dados mais evidentes – para conseguir efeitos de sedução. O cineasta é um contador de histórias, um criador de um mundo. Não é à toa que A.O. toma como metáfora a figura do policial Jamil Warwar, especialista em disfarces, quando decide realizar o primeiro trabalho aparentemente documental. Dizemos aparentemente porque o filme é documental, mas não é só isso. Mesmo documentanto a vida e o trabalho do policial, O Inspetor é ao mesmo tempo uma espécie de elogio da máscara. Filmando Warwar, Arthur Omar faz a sua autobiografia artística. Com direito ainda ao final do filme, que preconizará todo o trabalho que ele fará em cima da violência na década seguinte. Se O Inspetor é sua autobiografia, O Som, Tratado de Harmonia é sua profissão de fé, sua "Arte Poética". Ensaio sobre o som, mas não só: um tratado sobre o artifício. Nenhum título de A.O. está livre dessas ciladas. Um filme de Arthur Omar é sempre sobre outra coisa...

4. Títulos, títulos... Há Tesouro da Juventude, mais um filme auto-explicativo, talvez o que mais permita entrar no universo de A.O. "Tesouro da juventude" era uma das coleções enciclopédicas para jovens, uma espécie de "Tudo o que um jovem rapaz deve saber sobre o mundo". Ora, como não imaginar o que o homem dos anti-documentários faria com um título tão compreensivo desses? Tudo entra nesse filme, menos a didática para as crianças. Imagens retiradas como que do nada, sem real conexão a não ser o fato de serem elas mesmas, de existirem por si sós, oprimidas por uma (excelente) música composta pelo próprio Omar. Nada parece próprio. Tudo é exótico. Numa delas, A.O. se entrega: incorpora ao filme trechos de Viagem à Lua, de George Méliès. Ora, da mesma forma que víamos em Jamil Warwar um mágico, um senhor detetive e um mestre dos disfarces, não podemos deixar de notar que Méliès, que era mágico por profissão e foi o primeiro a fazer com o cinema "truques de mágica", serve como testemunho de devoção, de identificação: mestre do cinema e senhor dos truques.

5. Os eleitos da história do cinema que entram na obra de Arthur Omar já nos dizem tudo: George Méliès, Eisenstein (como trabalho de pós-graduação), Raul Ruiz. De todos os grandes ficcionadores, só não vemos Orson Welles... E de Eisenstein, o que se pega? Justo o que há de construtor de mundo, de anti-"verdade", a montagem. No filme sobre Raul Ruiz, ouvimos de A.O.: "se eu filmar você, você fica falso. Tudo que eu filmo é falso". De fato. Arthur Omar não filma a face, ele filma a máscara. Ele não retrata, ele cria a partir. Como em Sumidades Carnavalescas: as imagens são de carnaval, e o próprio título do filme nos conduz a interpretar tudo que vemos como um filme sobre carnaval. Só que a banda de som nos diz outra coisa. O som exibe uma batucada insistente, só que ao longo do filme vemos que um instrumento passa e assume todo o ambiente, vai pra destaque e depois volta, humilde, para compor o equilíbrio – o som, tratado de harmonia. Percebemos que é de fato o som que é o principal elemento do filme, de onde todas as outras imagens se ordenam – musicalmente. Assim também em Tesouro da Juventude, Música Barroca Mineira...

6. Muito se falou, em debates na mostra dedicada a A.O., de quebra das utopias. E sim, a utopia positivista, "científica" e didática da imagem é quebrada. Jean-Claude Bernardet fala de "filme de sonegação"2. E houve uma pequena polêmica acerca do que seria uma "utopia do instante". Sem teleologia final, sem uma verdade que o filme conseguisse captar do mundo, o instante seria o refúgio, a possibilidade de felicidade. Mas o instante é uma utopia? A questão nos parece um pouco mal colocada. Uma teleologia, um projeto se baseia no primado do mesmo. Na identidade. E todo o cinema de A.O. quer nos dizer: "O cinema não é o espelho. E quando se cria um gozo através das imagens, esse gozo não sai do reflexo do espelho (logo, da identidade), mas da criação de um espelho turvo, deformante". Domínio do instante. Sim, nos parece. Mas jamais uma utopia. O instante em ato, mesmo sem fim de tunel ou chão sob os pés. "Tudo que eu filmo é falso". Mas a falsidade das imagens é verdadeira.

7. Por isso e outras coisas que a sua produção na última década nos decepciona um pouco. A.O. se deixa entregar rápido demais a uma relação imediata com o espectador, com efeitos "sem conceitos", significando talvez uma sensibilidade que não precise passar por uma compreensão, um efeito estético que seja físico em direção ao espectador. E é justamente aí que ele parece cair numa cilada quando redireciona sua carreira a outro ponto. Pois para mexer com os dados "físicos" do espectador, A.O. tem que se dirigiar ao senso comum dele, espectador. E nada mais "físico" do que as imagens de violência, morte, assassinato que estão presentes em grande parte de sua obra de 1988 para cá (Ressurreição, Massaker, Inferno, Atos do Diamante). Só que A.O. pela primeira vez passa a acreditar nas imagens que ele cria ou recria, passa a extrair delas uma beleza que parece inexplicável, uma beleza inefável que exista por si mesma, um belo que tenha fundo (quando toda a carreira anterior de Omar baseava-se na falta desse fundo). A beleza deixa de ser construída para atender a um programa. Sobretudo na idéia de êxtase: no êxtase o sujeito se vê fora de si, seja em momentos extremos de felicidade (o carnaval como tema principal, mas também os festejos e costumes populares) ou de tristeza (a morte, a crueldade). Mas o êxtase se sente, não se filma. Voltando acima ao texto, A.O. cai na própria cilada. Pela primeira vez seu cinema fica previsível, até alcançar momentos de pura gratuidade visual como Atos do Diamante e Inferno. Lidando com o paradoxo da morte parecer bela (os sangues de um vermelho lindo), esses dois filmes revelam talvez uma forma certamente interessante e instigadora, mas que funciona a esmo, por puro desejo de belo. E soa incrivelmente parecida com a publicidade. Uma publicidade hard, mas ainda uma publicidade.

8. Em Inferno, vemos imagens de um matadouro e registros de carnaval de rua nos anos 70. Num se mata, noutro se samba. Sempre com uma música em loop, muito expressiva e forte aos ouvidos. A música irrompe e ressignifica tanto a morte muito cruel dos bovinos quanto o carnaval dos foliões. Mas monta-se para atingir um objetivo. E montar samba com morte pra quê?

9. Por isso é interessante cavucar ainda a primeira parte de sua carreira, onde o falso domina mas domina como falso, sem precisar de um ideal estético para funcionar. A arte de A.O. é construtivista, ela própria cria seus meios de fruição, como grande parte da arte plástica interessante do século XX, como a filosofia faz desde os anos 60, como alguns grandes cineastas... Funcionando assim, Arthur Omar é grande.

10. E Vocês?

Ruy Gardnier


1. O cinema documental, como quase sempre, em atraso diante da ficção: a primeira "crise" da representação no cinema ficcional se dá com a trilogia da guerra de Rosselini ou, no máximo, com os filmes de Alain Resnais, Jean-Luc Godard e Jean-Marie Straub.

2. in "A Voz do outro", Anos 70 – Cinema. Rio de janeiro: Europa, 1979