O Abismo: Cemitério de Elefantes


O filme-documentário, após um período de perseguição por parte dos intelectuais do cinema, tem retornado ao foco de atenção cinematográfica de forma já remodelada. Se a ditadura da narração em off e da montagem ilusionista já está perdida no passado (ou nas repetitivas séries de tv a cabo), o que se vislumbra agora é uma hegemonia do documentário baseado em entrevistas e depoimentos – como que na postura de se dar voz aos personagens... Desde um documentário conspiratório-megalomaníaco como o vencedor do É tudo Verdade, Sacrifício, até a discreta e vivaz política exercida por Eduardo Coutinho, o diálogo propriamente dito tem sido a vedete maior do gênero documental. Como toda vedete e toda hegemonia, o filme-de-entrevistas vem correndo o sério risco de se tornar mais uma ferramenta inócua na reformulação dos parâmetros de realidade/verdade proposta por inovadores como o próprio Coutinho. O uso aleatório e ingênuo das entrevistas pode, e já vejo isso ocorrer em alguns casos, como um deslocamento da voz de Deus clássica (narração off) para o as vozes dos deuses-personagens. A Verdade absoluta ainda reside nesse tipo de filme, só que agora ela é montada e diluída como um mosaico e não mais se aparenta como um pesado monolito. Porém, como (novamente) no caso de Sacrifício, tal Verdade diluída pode ser uma ferramenta de imposição extremamente perigosa.

A entrevista não é nem pode ser a nova morada/fonte da Verdade – o documentarista não pode se deixar enganar a si mesmo! Não é o fato de que ele está diante de um personagem e que este personagem esteja contando histórias para a câmera que vai significar que esteja se abrindo para ouvir a realidade direto da suposta fonte... Todo filme, simplificando os termos, é uma baita mentira que a gente conta – o documentário de entrevistas é uma mentira que se prega junto com o entrevistado, um espetáculo de interação e invenção de realidade. O documentarista não pode achar que, pelo fato de estar conversando com seu personagem ele seja capaz de se colocar em seu lugar, no papel de seu entrevistado (como quando ao falar com uma pequena criança nos agachamos para lhe olhar nos olhos e afinamos a voz). Não se pode ir para uma tribo indígena e achar que conversando com os índios se entenderá como é o ser índio – o máximo que se pode ter é uma interpretação, um sentimento – que nunca estará além ou aquém da dita realidade, mas apenas em suas bifurcações. O documentarista deve sempre se lembrar que não importa o quanto ele tente se aproximar do objeto filmado, ele nunca poderá se transpor para dentro dele – haverá sempre o sutil e pequenino abismo que separará as realidades de cada um deles... E a ponte frágil de ligação será tão passageira quanto à projeção de seu filme.

* * *

Quando Cemitério de Elefantes terminou sua projeção no 6o Festival Brasileiro de Cinema Universitário a reação do público presente no CCBB foi a de um silêncio profundo. Algumas palmas ao fim dos créditos e um mal estar se espalharam pela sala. Uma manada de elefantes pareciam mesmo ter atropelado o público e o júri presentes no cinema – a promessa inicial do filme tinha se transformado numa armadilha pavorosa...

O melhor filme do Festival! Sem dúvidas! Filme de dar rasteira no público, de desmontar e remontar conceitos – de por em dúvida boa parte de toda essa hegemonia do diálogo que descrevi acima. Um filme radical em sua proposta e na postura com que o realizador, Rodrigo Lorenzetti soube dar às regras de seu jogo:

A proposta em si já parece assustadora: um ator fará um laboratório para a composição do personagem de um mendigo bêbado nas ruas de São Paulo e para isso se fará passar por um deles, se misturando a eles...tudo sendo filmado por uma equipe de cinema. À partir daí sequências de uma crueza absurda serão lançadas diante do espectador: ciente de todo o jogo (explicado num off no início do filme), o espectador se vê diante de uma realidade onde seus parâmetros de bons modos, qualidade de vida e dignidade parecem ter sido catapultados para fora de órbita.

Ironizando a tentativa clássica do entrevistador de se aproximar de seu entrevistado, o ator/entrevistador leva isso ao extremo se fazendo se passar por um dos mendigos. As conversas nas esquinas, deitados nas calçadas e bebendo muita cachaça se seguem tratando da vida nas ruas, de seu dia-a-dia vivendo expostos à cidade. Não se tratam de entrevistas propriamente ditas mas de uma convivência intensa entre dois personagens, um vivido por um ator, outro vivido por um mendigo que (avisado e explicado de que estaria fazendo parte de um filme) interpreta a si mesmo. Numa das cenas mais chocantes do filme – o ator propõe a um mendigo um vira-vira de um copo de cachaça inteiro; "mas e se o mendigo tivesse um coma alcoólico" – perguntam alguns – sem perceber a sutil ironia que a cena nos guardava: o ator vira o copo, o mendigo finge virar, pára e ri do companheiro... Esse instante em que a tentativa de aproximação parecia ir extrapolar a suposta ética do documentarista, o mendigo trata de dar seu drible no espectador: ele não entra no jogo! O "pobre diabo" do mendigo não entra no jogo do ator e ri quando o vê virar o copo inteiro de cachaça... Alguma coisa ali estava perdida – na total identificação tentada de forma desesperada pelo ator há uma superinterpretação – o ator é mais personagem do que sua fonte de inspiração!

Esse tipo de imagem de rara crueza e sutileza , são os trunfos maiores do filme de Lorenzetti. Ao levar a tentativa do diálogo/interação ao extremo da confusão efetiva dos papéis e na explicitação da intervenção do filme naquela realidade, Rodrigo consegue um efeito devastador para aqueles que defendem o diálogo como solução definitiva para a integração social. Cemitério consegue mostrar que o diálogo visto como a suposta introjeção da realidade alheia em nossas vias é um falso remédio fadado à extinção. Como diz Eduardo Coutinho: ele não é amigo de seus personagens, não se interessa pela vida deles – ele quer suas histórias, é isso! Cemitério derruba justamente a pretensão dos documentaristas que consideram que a câmera e o filme sejam uma ferramenta onde as pessoas possam se colocar no lugar umas das outras, se projetar naquelas vítimas... Os mendigos de Lorenzetti não são vítimas, são pessoas cujos valores são respeitados inclusive na hora da troca das entrevistas por cachaça! "Mas por que não um prato de comida?" - perguntam alguns. Porque para um mendigo não há absurdo algum em aceitar uma garrafa de cachaça em troca de uma entrevista – os pudores do público classe-média do CCBB parecia não aceitar que um mendigo (clássico exemplar do povo-bom-vítima) trocasse sua presença no filme por uma garrafa de cachaça!...

A insistência do público em acusar Lorenzetti de estar desrespeitando e expondo aquelas pessoas a um suposto ridículo parece ser marca de uma má educação imposta pela ideologia do "povo simples mas gente boa": o público espera uma espécie de redenção das personagens, espera tiradas geniais dos bêbados, espera aquelas típicas historinhas edificantes que costumam rechear os filmes de entrevista e transformar o dito "povo" em pessoas admiráveis. Por que essa ditadura da admiração da classe-média pelo "povão" – essa adoração por achar nos comentários de personagens de filmes como os de Coutinho uma história, um depoimento que nos revigore a idéia de que nosso povo é simples porém feliz, esperto, sagaz...ou seja lá quais forem os elogiosos preconceitos. O fato é que o filme de Lorenzetti não nos apresenta personagens edificantes, não nos transporta para um universo de grandes histórias encantadoras. O mendigo do Cemitério é sujo mesmo, bebe muito mesmo, tem "maus-modos" mesmo... "Mas não é um absurdo expor pessoas em tal grau de degradação?" - perguntam outros. O que Cemitério consegue mostrar é justamente que não se pode querer julgar nem a "bondade" do "povo" nem a sua degradação – os parâmetros de vida digna que utilizamos não podem ser usados para que a presença de pessoas como esses personagens fiquem alijados de nossos meios de imagem. Não é porque o consideramos em estado de indignidade que podemos simplesmente ignorar sua vontade de participar de um filme feito à cerca de seu dia-a-dia... A feitura de um documentário começa na escolha de seu tema – antiéticos portanto serão muito mais aqueles que preferirem castrar a expressão de pessoas por considerá-las indignas de si mesmas. Quem vai avaliar até que ponto um mendigo das ruas de São Paulo é ciente do efeito de sua exposição no cinema, quem vai medir até que ponto um morador de um bairro carente ou um menininho de classe-média sabe dos efeitos de uma exposição desse tipo? O fato é que ninguém sabe – nem mesmo o documentarista e não deve ser dele o papel de inibidor. Não se pode castrar um objeto ditando-lhe na montagem o que é digno ou não de sua aparência. A não ser em casos como os que Coutinho frisa: quando as pessoas contam histórias que podem vir a comprometê-las posteriormente... Mas nunca por sua presença: se uma pessoa tem sua presença na imagem considerada indigna por si só, já aqui temos um fator de importância no filme de Lorenzetti – como podemos falar em diálogo e em interação social se a simples visão de um mendigo bêbado nos tira de nossos parâmetros de boa realidade?...

O papel do ator é justamente esse de nos representar – esses supostos conhecedores de realidades que sobrevoam tudo com ar de julgamentos e reprovações. Tachando a boa e a má índole, ditando a boa vida – se achando capaz de entender o que se passa na cabeça de alguém tão distante. Somente desistindo da introjeção, poderemos pensar em termos de um diálogo de trocas – em que ninguém esteja ensinando nada a ninguém, mas interagindo de forma não julgadora diante do outro que não sou eu mas que se liga a mim... Como na última e melancolicamente esperançosa imagem do filme, quando o mendigo acaricia a cabeça do ator que chora descontrolado. Ali, não há redenção – como sugeriram alguns – eu vejo, sim, uma paralisia, uma angustiante inversão dos valores vítima/algoz, um desespero do ator/espectador que se vê diante daquela impossibilidade de chegar tão perto do outro a ponto de sabê-lo por inteiro. A conclusão óbvia do abismo, do fino abismo que separa cada um de nós – mas que pode e poderá sim ser atravessado em alguns pequenos instantes... em pequenos instantes raros – como essa última imagem que Cemitério de Elefantes leva seus 27 minutos para construir...

Felipe Bragança