Por pura diversão
ou Wiseman na Terra do Nunca


Titicut Follies de Frederick Wiseman

A pergunta é clara: por que você faz cinema?

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Titicut Follies, o primeiro filme de Frederick Wiseman teve uma trajetória conturbada. Filmado em um manicômio judiciário, iniciou toda uma filmografia dedicada a denunciar e criticar grandes instituições americanas "infalíveis. A partir de seu resultado final, teve sua exibição pública proibida e se tornou um verdadeiro ícone da primeira emenda americana (a de liberdade de expressão), ao ser levado inúmeras vezes a julgamento.

Proibido por conter cenas degradantes de alguns internos e sobretudo ferir a imagem de uma instituição supostamente sólida e confiável, Titicut não deve ser visto apenas como um filme-denúncia – seria um simplismo reduzir o filme a isso. Wiseman se aproveita de seus personagens-objetos para criar um espetáculo do abjeto. O desejo de colocar a instituição como personagem principal tenta uma visão generalizante de um material humano diversificado. O grande interesse em achar pontos de incongruência no manicômio gera em Wiseman um profundo desrespeito pelas pessoas que passam na frente de sua câmera. Indivíduos são tratados como uma peça de um jogo.

Wiseman se coloca como um mero observador do que filma, está tão distante do seu objeto que nem se quer se deixa tocar por ele. Se esquece que não é o olho-máquina-câmera, é Wiseman. Não é estabelecida relação alguma entre o Homem que filma e o Homem que é filmado, não há troca: Wiseman quer imagens, Wiseman terá imagens.

Para a espectadora, fica a estranheza de uma postura fria do realizador frente a imagens marcantes. Um realizador que não se deixa "sujar" pelo o que acontece diante de si, que nem mesmo quer ser notado, que disfarça sua presença em busca de uma naturalidade, de uma objetividade, e ignora todo o espetáculo que ele próprio cria para seu objeto:

Um senhor idoso anda nu por sua cela-quarto batendo o pé no chão com um ritmo marcado. Dá voltas no espaço apertado, a porta de sua cela está aberta e, eventualmente, ele passa para um espaço que não vemos. Um guarda, no corredor, em primeiro plano, repete insistentemente uma mesma pergunta: você arrumou seu quarto hoje? Você arrumou seu quarto hoje? Você já arrumou? O interno continua, insistentemente, a fazer o mesmo movimento giratório, de repente pára, parece ter se acalmado. Você arrumou seu quarto hoje? Você arrumou seu quarto hoje? O interno volta a fazer o movimento batendo cada vez com mais força no chão. O guarda faz perguntas sobre a vida pessoal do interno, perguntas que só tem como resposta um afirmativo sim.

A filmagem dessa cena é, obviamente, um Acontecimento para a rotina do manicômio, as pessoas reagem particularmente à ela (apesar de na maioria das vezes, Wiseman querer mostrar o contrário – são poucas as pessoas que sequer olham para a lente); o guarda, ao ver que a câmera se interessa por ele, estende seu espetáculo ao máximo, continua insistentemente a humilhar o paciente do qual deveria estar cuidando, demostra um súbito interesse em dar informações sobre a vida do outro. De que forma Wiseman não está sendo conivente com essa situação ao procurá-la como um espetáculo? Mesmo que situações como não essa deixem de acontecer em sua ausência, sua presença, a presença da câmera, engrandece qualquer ato ali dentro, seja o abjeto ou não; Wiseman parece não querer o "ou não".

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A pergunta é clara: por que você faz cinema?

"For fun."

É a resposta dada durante o debate com Wiseman e João Moreira Salles, logo após a sessão de Titicut Follies (É Tudo Verdade 2001).

A decepcionante resposta de Wiseman é um sintoma de toda a contradição que existe entre sua filosofia de realização e seu produto final. Uma resposta que parece reduzir radicalmente toda a dimensão política da sua obra, trazendo à tona um discurso dissonante a Titicut Follies. Um discurso que defende uma subjetividade do espectador enquanto produtor de um sentido para seu filme; cada um deles tiraria uma conclusão sobre o tema, porém o próprio filme é extremamente limitado na gama de conclusões que pode oferecer. Wiseman não quer ser objetivo, porém, seu filme reflete uma postura distanciada e totalizante sobre uma instituição. Um discurso que também defende sua câmera como não interventora da realidade que filma, pois as pessoas não teriam a capacidade "mágica" de se transformar diante da lente. Que defende não desrespeitar as pessoas que filma, simplesmente, porque nunca alguém foi reclamar pessoalmente a ele. Um discurso que defende seu interesse pelos pequenos dramas humanos, enquanto o que vemos são os grandes espetáculos destes mesmos dramas. Um discurso que tenta, inutilmente, legitimar um método.

A grande contradição de Wiseman talvez esteja justamente em seu método: o simples fato de se filmar 30 para 1 (o que vemos na tela é a porcentagem de 1/30 do todo do material filmado), talvez seja o suficiente para que exista um fosso enorme entre discurso/filme. Um método que permite uma convivência tão intensa com o ambiente filmado (cerca de dois meses, de 12 a 14 horas por dia), que acaba criando uma atmosfera menos incômoda para uma filmagem, tentando diluir a presença da câmera. Um método que produz uma quantidade tão grande de material, que permite também a montagem de um filme inteiro só com momentos extremamente especiais e espetaculares, que impede que o tédio dos tempos mortos sequer exista neste ambiente. Um material tão grande que, ao ser montado, pode dispensar os momentos mais espontâneos de uma filmagem, esquecendo-se de que um manicômio também é feito de não-acontecimentos. Um filme que quer nos mostrar uma visão totalizante do funcionamento de uma instituição, porém é enganado pelo seu próprio método de realização. O método talvez faça de Wiseman um grande mentiroso: seja por usar seu discurso na legitimação de uma duvidosa ética pessoal, seja pela ineficácia deste método frente às suas supostas intenções.

As incongruências de Wiseman não fazem de Titicut Follies um filme menor, pelo contrário, é justamente por elas que ele é um filme instigante, central para qualquer tentativa de uma História do Documentário. Uma História de verdades.... e mentiras.

Marina Meliande