Por
pura diversão
ou Wiseman na Terra
do Nunca
Titicut
Follies de Frederick Wiseman
A pergunta é clara: por que você
faz cinema?
* * *
Titicut Follies, o primeiro filme
de Frederick Wiseman teve uma trajetória conturbada. Filmado em
um manicômio judiciário, iniciou toda uma filmografia dedicada
a denunciar e criticar grandes instituições americanas
"infalíveis. A partir de seu resultado final, teve sua
exibição pública proibida e se tornou um verdadeiro
ícone da primeira emenda americana (a de liberdade de expressão),
ao ser levado inúmeras vezes a julgamento.
Proibido por conter cenas degradantes de
alguns internos e sobretudo ferir a imagem de uma instituição
supostamente sólida e confiável, Titicut não
deve ser visto apenas como um filme-denúncia seria um simplismo
reduzir o filme a isso. Wiseman se aproveita de seus personagens-objetos
para criar um espetáculo do abjeto. O desejo de colocar a instituição
como personagem principal tenta uma visão generalizante de um material
humano diversificado. O grande interesse em achar pontos de incongruência
no manicômio gera em Wiseman um profundo desrespeito pelas pessoas
que passam na frente de sua câmera. Indivíduos são
tratados como uma peça de um jogo.
Wiseman se coloca como um mero observador
do que filma, está tão distante do seu objeto que nem se
quer se deixa tocar por ele. Se esquece que não é o olho-máquina-câmera,
é Wiseman. Não é estabelecida relação
alguma entre o Homem que filma e o Homem que é filmado, não
há troca: Wiseman quer imagens, Wiseman terá imagens.
Para a espectadora, fica a estranheza de
uma postura fria do realizador frente a imagens marcantes. Um realizador
que não se deixa "sujar" pelo o que acontece diante de
si, que nem mesmo quer ser notado, que disfarça sua presença
em busca de uma naturalidade, de uma objetividade, e ignora todo o espetáculo
que ele próprio cria para seu objeto:
Um senhor idoso anda nu por sua cela-quarto
batendo o pé no chão com um ritmo marcado. Dá voltas
no espaço apertado, a porta de sua cela está aberta e, eventualmente,
ele passa para um espaço que não vemos. Um guarda, no corredor,
em primeiro plano, repete insistentemente uma mesma pergunta: você
arrumou seu quarto hoje? Você arrumou seu quarto hoje? Você
já arrumou? O interno continua, insistentemente, a fazer o mesmo
movimento giratório, de repente pára, parece ter se acalmado.
Você arrumou seu quarto hoje? Você arrumou seu quarto hoje?
O interno volta a fazer o movimento batendo cada vez com mais força
no chão. O guarda faz perguntas sobre a vida pessoal do interno,
perguntas que só tem como resposta um afirmativo sim.
A filmagem dessa cena é, obviamente,
um Acontecimento para a rotina do manicômio, as pessoas reagem particularmente
à ela (apesar de na maioria das vezes, Wiseman querer mostrar o
contrário são poucas as pessoas que sequer olham
para a lente); o guarda, ao ver que a câmera se interessa por ele,
estende seu espetáculo ao máximo, continua insistentemente
a humilhar o paciente do qual deveria estar cuidando, demostra um súbito
interesse em dar informações sobre a vida do outro. De que
forma Wiseman não está sendo conivente com essa situação
ao procurá-la como um espetáculo? Mesmo que situações
como não essa deixem de acontecer em sua ausência, sua presença,
a presença da câmera, engrandece qualquer ato ali dentro,
seja o abjeto ou não; Wiseman parece não querer o "ou
não".
* * *
A pergunta é clara: por que você
faz cinema?
"For fun."
É a resposta dada durante o debate
com Wiseman e João Moreira Salles, logo após a sessão
de Titicut Follies (É Tudo Verdade 2001).
A decepcionante resposta de Wiseman é
um sintoma de toda a contradição que existe entre sua filosofia
de realização e seu produto final. Uma resposta que parece
reduzir radicalmente toda a dimensão política da sua obra,
trazendo à tona um discurso dissonante a Titicut Follies.
Um discurso que defende uma subjetividade do espectador enquanto produtor
de um sentido para seu filme; cada um deles tiraria uma conclusão
sobre o tema, porém o próprio filme é extremamente
limitado na gama de conclusões que pode oferecer. Wiseman não
quer ser objetivo, porém, seu filme reflete uma postura distanciada
e totalizante sobre uma instituição. Um discurso que também
defende sua câmera como não interventora da realidade que
filma, pois as pessoas não teriam a capacidade "mágica"
de se transformar diante da lente. Que defende não desrespeitar
as pessoas que filma, simplesmente, porque nunca alguém foi reclamar
pessoalmente a ele. Um discurso que defende seu interesse pelos pequenos
dramas humanos, enquanto o que vemos são os grandes espetáculos
destes mesmos dramas. Um discurso que tenta, inutilmente, legitimar um
método.
A grande contradição de Wiseman
talvez esteja justamente em seu método: o simples fato de se filmar
30 para 1 (o que vemos na tela é a porcentagem de 1/30 do todo
do material filmado), talvez seja o suficiente para que exista um fosso
enorme entre discurso/filme. Um método que permite uma convivência
tão intensa com o ambiente filmado (cerca de dois meses, de 12
a 14 horas por dia), que acaba criando uma atmosfera menos incômoda
para uma filmagem, tentando diluir a presença da câmera.
Um método que produz uma quantidade tão grande de material,
que permite também a montagem de um filme inteiro só com
momentos extremamente especiais e espetaculares, que impede que o tédio
dos tempos mortos sequer exista neste ambiente. Um material tão
grande que, ao ser montado, pode dispensar os momentos mais espontâneos
de uma filmagem, esquecendo-se de que um manicômio também
é feito de não-acontecimentos. Um filme que quer nos mostrar
uma visão totalizante do funcionamento de uma instituição,
porém é enganado pelo seu próprio método de
realização. O método talvez faça de Wiseman
um grande mentiroso: seja por usar seu discurso na legitimação
de uma duvidosa ética pessoal, seja pela ineficácia deste
método frente às suas supostas intenções.
As incongruências de Wiseman não
fazem de Titicut Follies um filme menor, pelo contrário,
é justamente por elas que ele é um filme instigante, central
para qualquer tentativa de uma História do Documentário.
Uma História de verdades.... e mentiras.
Marina Meliande
|
|