Do dia em que o lobo mau comeu a vovozinha... de novo!


Frederick Wiseman

Domingo de sol no Rio de Janeiro, 15:30. Em pleno verão de abril (no Rio, a todo vapor...), uma horda de jovens se locomove até o Centro Cultural Banco do Brasil em números mais facilmente associados ao Anima Mundi, que além das mais "agradáveis" animações exibidas, acontece no inverno. Para o É Tudo Verdade, um fato novo, ainda mais em se tratando dos filmes de um velho senhor americano rabugento, chamado Frederick Wiseman. Neste adorável domingo, em especial, estará sendo exibido seu primeiro filme, Titicut Follies, uma autêntica porrada que este que vos escreve certamente colocaria entre seus dez filmes prediletos do cinema americano, fácil, fácil. Depois da sessão, haveria um debate com o diretor e João Moreira Salles, documentarista brasileiro de renome. Não só o público esgotou os ingressos duas horas antes como esperou no hall para assistir o debate num telão, uma coisa assim meio Caetano Veloso lendo seu livrinho.

O debate começa e Salles faz um agradável (ainda que por vezes equivocado) panorama geral do documentário mundial para tentar localizar Wiseman e sua importância. Compreensível e até louvável, mas meio desnecessário depois do filme exibido. Mas começa o papo. Salles se diz um admirador de Wiseman, acima de tudo, porque nos filmes dele há uma "ausência de ponto de vista", ou seja, cabe ao espectador se posicionar quanto ao material filmado, não o documentarista. Ele vai além e cita a admiração também pelo fato de que os filmes acabam como começam, ou seja, não há um desenvolvimento narrativo, parece uma obra que pega uma realidade num determinado momento e a larga num posterior, mas poderia facilmente ser em outros momentos. Não há a noção de começo, meio e fim. Ele só cita como único senão que o motiva a estar ali para colocá-lo pessoalmente, o fato de achar que o extremo "distanciamento" de Wiseman cria um problema "ético" com o que ele filma. Será que ao filmar seus "excluídos da sociedade" daquela forma ele não estaria "perpetuando o mecanismo de desumanização das instituições que retrata"? (as aspas, a propósito, são todas literais sim)

Bom, estes primeiros atos do que poderia ser uma das maiores comédias de erros já encenadas num debate (um admirador que admira por todos os motivos errados, e que contesta idem), acabaram sendo o ambiente ideal para se ver uma das mais cristalinas demonstrações de coerência de discurso e obra de um realizador no cinema moderno. Muitos são os cineastas que realizam obras geniais e as justificam com discursos obtusos ou simplesmente redutores, e outros tantos realizam péssimos filmes mas possuem grandes argumentos. Raras vezes a obra está na palavra do cineasta. Por isso mesmo, no geral, detesto ouvir um diretor falar de seu filme: prefiro que ele fale do cinema como um todo, do dia a dia do set, do método de trabalho, mas deixe a análise para outros. Afinal, na maioria das vezes o diretor discursa sobre o filme que quis fazer, mas raras vezes sobre o filme que fez, e a diferença geralmente é grande...

Wiseman transformou este debate de erros numa aula magna justamente porque possui duas características que o diferem de Salles e da maioria dos cineastas latinos (e em especial brasileiros): simplicidade e pragmatismo. Claro, ele poderia ter longas e tortuosas respostas, mas isso estaria tão em desacordo com seus filmes quanto seria ver Godard falar de cinema sucintamente. Na verdade, o grande prazer deste debate foi confirmar que o que se tinha visto até ali nos filmes de Wiseman era a exata expressão do diretor que ali estava: um olhar sobre o mundo, apaixonado sim pela vida, curioso, desconfiado do mundo institucional do Homem e seus desdobramentos, mas acima de tudo ciente de que passar mão na cabeça ou apontar dedos em culpados é coisa perdoável somente num jovem líder estudantil, no máximo.

Pois era este "velhinho gente fina" que estava lá, na frente de uma platéia que, como seu mediador, estava ávida por um super herói. Por um defensor do povo, por um "salvador". Esta é a história política, religiosa, social deste país. Não seria no cinema que aconteceria algo de diferente, e o Cinema Novo está aí para mostrar. As elites latino americanas, católicas e arrogantes que são, na sua melhor "encarnação", se vêem no dever de salvar o mundo, e em especial os "menos favorecidos". Mesmo que para isso tenham que não ouvi-los, ou mesmo mandar que calem a boca. Não vêem que este não é seu dever, e pior, não é seu direito. Devem no máximo, no máximo mesmo, dar condições a todos que salvem a si mesmos. E foi simplesmente isso que Wiseman repetiu e repetiu naquele dia, mostrando o que de melhor o imaginário e a formação norte americana produzem.

Salles o elogiou, dizendo que seus filmes eram bons por não terem ponto de vista explícito. Wiseman polidamente agradeceu o elogio, mas discordou. Tinham sim um ponto de vista. Apenas não forçavam este ponto de vista sobre seus espectadores, acreditando que o significado do filme se constrói em algum lugar entre o imaginário do cineasta e o de quem assiste a obra. Portanto, é um cinema documental sem narração em off, sem legendas explicativas, sem trilha sonora. Sem guias para o espectador, mas com um ponto de vista sim, fortíssimo. Humanista. Só que na América Latina ser humanista parece querer dizer ser "bondoso", como se o ser humano não trouxesse em si o dom para atos nem tão nobres assim... Ser humanista, segundo Wiseman, é muito mais do que isso.

Salles disse que seus filmes eram admiráveis por serem recortes de realidade que pareciam não ter começo, meio e fim, apenas começavam e paravam em algum ponto qualquer da rotina, após uma kafkiana repetição. Filmes circulares, ele disse. Wiseman educadamente rejeitou a tese. Segundo ele, seus filmes possuem sim um direcionamento claro, uma narrativa linear. E só não vê isso quem não quiser. Eu iria mais longe: os filmes de Wiseman só podem terminar com os planos finais que os fecham. Imaginar seja Belfast, Maine seja Titicut Follies seja Welfare seja Hospital ou High School com qualquer outro final é não perceber a inteligência de raciocínio que encaminha suas narrativas para aquele último plano.

Mas, até aí Wiseman esteve tranquilo. Só que Salles resolveu perguntar se seu método de filmagem não era "conivente com os instrumentos de dominação institucionais", por sua postura aparentemente distanciada. Se isso não era um "problema ético". Foi a única vez em todo o debate que se viu Wiseman perder um pouco de sua elegância. Ouviu a longa e tortuosa (claro...) pergunta de Salles, pensou um pouco e retrucou, seco: "Ah, mas é uma pergunta? Pensei que fosse uma afirmação!" E argumentou com o que só não vê quem não quer: há uma diferença enorme entre ética e moral. É só ir aos dicionários, por favor. O que propõe Salles? Que Wiseman julgue de acordo com o seu código moral o que é ou não "adequado" filmar? O que é ou não adequado "mostrar"? O que é ou não "humilhante"? Por favor, isso não é ética. Falta de ética é esconder a câmera, quando Wiseman está sempre no meio da ação. Falta de ética é falar uma coisa e fazer outra. Falta de ética é não colher autorizações das pessoas retratadas. Julgar o que é ou não adequado não é papel do documentarista, do cineasta. É, no máximo, de cada espectador, e só. Seria sim anti-ético do cineasta (ou dos nossos super heróis) se fingir ao espectador de muito caridoso e esconder sua imposição de moral sobre a nossa. Só porque Salles acha algo "errado", ou eu, ou você que lê este texto, isso não quer dizer que o objeto filmado ou o espectador da cadeira do lado ache. Por favor. Isso é moral, não é ética. Como bem disse Wiseman: "Se eu tenho um problema moral com o tipo de coisa que acontece num hospital, numa delegacia ou num hospício, é melhor eu nem ir filmar lá, porque estarei filmando tudo errado."

Se há uma coisa engrandecedora na obra de Wiseman é que, ao contrário da maioria dos documentaristas, ele não julga as ações dos agentes institucionais erradas em si. Ou seja: as ações dos médicos do hospital, dos administradores do hospício, dos orientadores da escola, dos funcionários da previdência. Eles não são o problema, os monstros maldosos. São uma peça do sistema, humanas e errôneas sim, mas não são O problema. O problema está no cerne do que seja uma instituição e a forma como lida com a vivência humana. O problema está na necessidade delas na organização social. Não nas pessoas que estão atuando por elas, que são apenas engrenagens da máquina. Isso incomoda a quem assiste querendo dizer "que canalhas..." O filme bate muito mais fundo.

Mas, queremos o pai bondoso, seja no cineasta, seja no presidente, não é? Em seguida um espectador perguntou: "E o senhor não voltou para ver como estavam estas pessoas?", querendo ouvir que sim, que elas estão melhores, que o mundo está em evolução. Wiseman é taxativo: "Não faço cinema para fazer amigos". Esta frase, se pensada no contexto João Moreira Salles-Marcinho VP, podia explicar todo este texto, e o que eu quero dizer de diferença de postura entre um homem e outro como profissionais do cinema. Porque a necessidade de fazer mais do que um filme? É duvidar do poder deste? Precisamos salvar a todos, mesmo?

Por que mais? Por que não perceber que em Wiseman são todos tratados como iguais perante a câmera? Por que precisar que Wiseman reconheça que está "narrando"? Isso não é óbvio, intrínseco? Se há uma câmera, se há um corte, ele não está narrando? Por que ser tão condescendente com o espectador? Claro que Eduardo Coutinho, ao se colocar em frente à câmera, quer dizer algo. Mas esta não é a única forma de dizê-lo. Quando Wiseman cria seus zooms desconcertantes, ele está dizendo o mesmo. Quando estica incomensuravelmente um plano ao limite do suportável, idem. Só que o diz pela montagem, pela fotografia, porque é antes de tudo um bicho de cinema.

"Mas. Mr. Wiseman, com a câmera no recinto, as pessoas não atuam para ela?" Claro que sim, ora bolas. Mas, ao fazerem, estão dizendo muito mais ainda sobre si mesmos. Porque agem de acordo com seu padrão moral. Com o que eles acham que fica certo na frente da câmera. E com isso, não estão se revelando mais ainda?? É só ver os policiais em Juvenile Court ou os médicos em Titicut. O problema é querer sair de um ponto de partida absolutamente simplório (em algum lugar do mundo existe uma "realidade per se" se desenvolvendo que a câmera pode captar), e a partir dele esboçar uma teoria que acha errado o efeito da câmera sobre as pessoas. O que começa errado não pode acabar bem. O mesmo vale para a idéia de que existe uma forma apenas do documentarista dizer "ei, estou filmando..." Se for assim, meu Deus, o mais típico filme hollywoodiano ou mesmo Eisenstein eram anti-éticos!! Santo erro de tiro, Batman!

Mas, claro, tudo se resumia de fato a uma última pergunta: "Porque, afinal, filmas, mr. Wiseman?" Na resposta, o horror! "For fun". "Por diversão. É melhor do que ser advogado." Não, não pode, mr. Wiseman. Você não quer salvar o mundo, melhorar o planeta, quiçá salvar as baleias pelo menos??? Mr. Wiseman, não acredita que filmes possam mudar o mundo?? "Filmes podem mudar um espectador de cada vez, e mesmo assim não sozinhos." Ou seja, um filme pode ter no máximo o efeito de mais uma informação em meio ao manancial delas que forma cada cabeça de espectador que o assista. Por mais indignado que saia de uma sessão, a tendência do ser humano é estar já bem diferente meia hora depois, após um choppinho ou afim. "Não, Mr. Wiseman, não!!! Não aqui, não no Brasil. Após cada sessão de um filme saímos pela rua em passeatas e protestos veementes... Mudamos o mundo!" Por favor, por favor...

Em suma, o problema principal de mr. Wiseman é ser o que seu nome diz: um homem esperto. Sabe das coisas. Não é super herói, não é um bom velhinho, não é um cara batuta. É um documentarista. Que filma como nenhum outro, que se posiciona perante o mundo como nenhum outro, que revela seu país e suas engrenagens como nenhum outro. Que se revela como nenhum outro, de forma tão transparente (embora alguns não queiram) que cada resposta deste debate podia ser prevista por quem tivesse visto de verdade seus filmes, mergulhado neles. Que confirmou neles que o Homem não é bom. Nem mau. É só o Homem, como mr. Wiseman. Obrigado, mr. Wiseman. E, desculpa se mais tarde naquele dia, na sessão de Welfare, depois de três horas de um dos mais excruciantes painéis da verdadeira loucura do Homem perante a força maior das instituições que o regem, só houvesse dez pessoas assistindo. Desculpe, mr. Wiseman, mas aqui no Brasil ainda precisamos de alguém que salve o mundo. Até quando?

Eduardo Valente