As Provas e as idéias:
Sacrifício X A Negação do Brasil


Sacrifício de Erik Gandini e Tarik Saleh

Não me proponho aqui a julgar escolhas, nem para o bem nem para o mal. As premiações de Sacrifício (competição internacional) e A negação do Brasil (brasileira) não estão sendo, de forma alguma, colocadas em dúvida... Estão, sim, colocadas em Questão.

Disse-se na imprensa diária , como também foi justificativa dos jurados do festival , que os filmes premiados no É tudo Verdade 2001 se destacaram, ambos, por seu caráter de pesquisa, por seu valor enquanto investigação histórica. Tais valores, porém, a meu ver, não estão presentes da mesma forma nos dois filmes: as posturas documentais diante dos fatos recolhidos são extremamente diversas e apontam para uma maior coerência de método por parte do filme de J. Z. Araújo em comparação ao confuso modelo de investigação do filme sueco.

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Sacrifício é um filme sueco sobre três jovens (também suecos) investigando histórias em torno da figura de um homem (Ciro Bustos) historicamente reconhecido como o homem que entregou Che Guevara ao exército da Bolívia. Sacrifício é um thriller-documentário, uma história contada em ritmo crescente, com clímax extremado e final redondinho... Tais características, além de criarem uma obra realmente curiosa, nos trazem sinais de que, em algum ponto, o discurso do filme se dispersa... De que forma?

Como se contruir um filme que quer ser ao mesmo tempo investigação de fatos e thriller ritmado (ao som de música eletrônica) com bandidos e mocinhos bem insinuados ? Qual a coerência de um trabalho que busca fatos históricos através do olhar restrito de um homem que se diz injustiçado – como ser imparcial se já se parte de um filtro pessoal como impulso da pesquisa? Como então, esse mesmo filme, pode querer se vender como um desvelamento de antigos erros históricos?...

Sacrifício trabalha numa tênue linha da investigação, uma linha objetivo-cínica que, nem se ausentando de julgamentos nem se vestindo de juiz, quer dar a entender que as idéias presentes se tratam de descobertas espontâneas e que a inocência de Ciro Bustos é uma conclusão direta insinuada por decorrência dos fatos em-si. Não assume sua postura, suas intenções – dilui sua tese numa tola afirmação de que as palavras escritas na História seriam surpreendentemente frágeis diante das revelações de suas imagens.

Mas não seriam as imagens também tão frágeis, não seriam as palavras ditas também ferramentas impotentes para o alcance de uma verdade definitiva? Chego mesmo a me sentir repetitivo: mas como podemos ainda acreditar nessa obtusa visão da imagem do cinema/vídeo como modelo de objetividade imparcial?!...

Sacrifício tem uma tese, tem um lugar de onde olha e não explicita! Dá-nos a entender que não quer chegar a lugar algum , que quer manter a dúvida, quando pode-se perceber que o filme faz justamente o inverso: parte de uma certeza para tentar comprová-la. Desde o início, sua postura diante dos entrevistados é a de proteger a imagem de Ciro e tratar de seu sofrimento como uma injustiça, fazendo de seus opositores figuras nem um pouco confiáveis. Se ao menos eles admitissem isso claramente, explicitamente...

Misturando um pouco de jornalismo tradicional (a là Globo Repórter) com uma maquiagem moderninho-fashion, Sacrifício busca sua força na crença de que sua tese é fruto de um desvelamento de fatos, não ampliando sua crítica às verdades da construídas pela imagem.

Argumentação, não provas – essa é a questão chave a ser pensada:

Uma questão que Araújo , justamente, toma como cerne de sua realização/apresentação. Em A negação do Brasil, ao tratar da discriminação e dos preconceitos em torno do ator negro na televisão brasileira, o diretor não parte de dados científicos, de estatísticas didáticas – Araújo parte de um relato pessoal de vivência e de impressões. Ao contrário de apresentar provas supostamente concretas que fariam de sua tese (essa sim, assumida explicitamente) uma resposta final ao assunto, Araújo se utiliza de uma narração off autorelativa e comenta os sintomas, os rastros que, a seu ver, indicariam o problema que critica.

O diretor admite seu filme enquanto apresentação de tese – não usa as imagens para provar mas para argumentar... Nos depoimentos , sejam dos autores, sejam de alguns responsáveis pela escolha de elenco, Araújo não procura dados que legitimem suas idéias, mas uma troca de idéias e novas opiniões sobre o assunto. Isso fica claro na questão sobre a Escrava Isaura branca de Lucélia Santos, onde, após dar sua interpretação dos fatos, permite ao responsável pela escolha da atriz que conte sua versão, sua própria história da escolha. Isso é, não se está tentando comprovar nada, mas construir um espaço que coloque essa questão em pauta através da percepção subjetiva de um homem negro que observa a seu redor, reflete sobre o que vê sente exilado...

Como uma tese calcada na argumentação e cujo objeto são as próprias imagens que assistimos, podemos contrapor as palavras da pessoa-diretor às imagens-objetos e ter o poder de discordar do que ele diz. Essa riqueza (do filme investigativo que não pretende findar a questão em si mesmo) é que dá a um filme estritamente acadêmico e burocrático como A Negação do Brasil, uma sutileza e coerência especiais. Muito mais do que respostas solucionantes, A negação quer manter viva e incompleta a questão por não enxergar uma possível solução se não na continuidade pós-fílmica, se não na vida fora da sala de cinema.

Terminando de assistir Sacrifício o quê nos passa pela cabeça é um "Então, tá." – em A Negação, a sensação é diferente, uma espécie de "E agora ?..." Não se trata de verdades e mentiras, mas de idéias em discussão...

Felipe Bragança