Recife:
um festival em constante contradição
Cláudio
Jaborandy (fundo) e Débora Duboc em Latitude Zero
de Toni Venturi
Apresentações de sessões
de cinema permitem algumas das mais fantásticas situações,
e a partir de discursos de diretores alguns filmes ganham imensamente,
assim com outros tantos perdem. O 5° Festival de Cinema do Recife teve
alguns discursos memoráveis, a maioria pelo lado ruim. Mas um especialmente
não sai da lembrança: o curtametragista Hermano Figueiredo,
quando ia apresentar seu São Luis Caleidoscópio,
entre várias ótimas frases, afirmou que Recife era um
cidade "feia, mas bonita; cruel, mas carinhosa; fedorenta, mas cheirosa".
Quebrando um pouco a ladainha do "Vocês são demais!", talvez
ele tenha feito o mais pertinente resumo da cidade, como também
do festival de cinema.
Recife de fato é assim: do chão,
não é particularmente bonita, mas sua geografia particular
de rios e mar, vista do alto, impressiona. Aparentemente dura na sua realidade
terceiro-mundista, revela-se completamente humana e calorosa no contato
com seus habitantes, com suas ruas e ruelas. Violenta, e poética.
Acima de tudo, vibrante. Esta verdadeira contradição de
cidade se reflete completamente no seu festival, e isso ficou ainda mais
claro neste ano.
Um festival que tem o maior e mais caloroso
público do circuito brasileiro, que impressiona todos os cineastas
que lá chegam. Mas que é o mesmo festival que não
consegue escalar uma seleção de filmes sequer razoável
na sua mostra de longas. Um festival que usa uma das maiores salas de
exibição do Brasil hoje para louvar o cinema, mas que não
consegue dar à seu sistema de exibição uma qualidade
de acordo (inúmeros foram os realizadores que reclamavam do som
do ambiente, com um dolby mal regulado, assim como havia constantes jatos
de luz na tela, as portas vazavam som o tempo todo no fundo da sala e
a competição de 16mm passou quase inteira fora de foco).
Um festival que homenageia negros e um cineasta
(Alberto Cavalcanti), mas não coloca sequer os filmes destas mostras
listados no catálogo, que não elabora um só texto
sobre nada disso, que não exibe um filme sequer deles no horário
nobre, na sua sala principal. Um festival que exibe apenas um filme em
homenagem aos "negros", escondido à tarde, mas que cria um manifesto
em sua defesa. Um festival que homenageia Cavalcanti, mas o faz em outro
lugar, de manhã.
Assim é o Festival de Recife, como
a cidade: uma contradição constante. Muitas vezes adorável
e sincero, é verdade, mas que muitas vezes (como na apresentação
do maracatu no encerramento ou com a tal campanha contra as armas) parece
estar fazendo apenas de tudo para aparecer, seja na mídia, seja
no reconhecimento nacional (afinal sob que outra ótica pode-se
justificar a inclusão de Os Cristais debaixo do Trono além
da presença de Ana Paula Arósio no Festival??).
Mas, certamente, nada foi mais surreal e
simbólico no Festival de Recife do que sua premiação.
Aí, ele simplesmente se superou. Começando pelos 16mm, onde
Intestino Grosso ganhou o prêmio de "filme" (não necessariamente
o melhor), visto que concorria com três obras altamente instigantes,
mas claramente apenas exercícios (dos quais o melhor é Cá
e Lá) e um arremedo de linguagem televisiva kinescopado um
"neo-noir" que fica melhor se chamado de constrangedor apenas. Depois
disso, optou-se por quebrar a categoria documentário em 16 e 35mm
(ela havia sido proposta como única), o que criou a aberração
de duas categorias onde apenas 3 filmes concorriam em cada. Assim, quando
A Invenção da Infância, um filme absolutamente
equivocado vence, nem eu posso tirar seu mérito pois (mais uma
vez) era o único "filme" competindo, com um copião mal editado
e um institucional indígena que relembra por que eu tenho muita
antipatia por índios (porque o cinema os retrata de forma tão
chata e careta, de forma geral). Em 35mm, as coisas melhoravam mais muito
pouco, e pensar em uma vitória de qualquer filme que não
Brennand seria ridículo.
Nos curtas 35mm em ficção e
animação, pelo menos o júri tinha filmes para julgar.
Se por um lado isso era uma melhora, dependendo do júri poderia
ser um perigo. Mas, incrivelmente, absolutamente todos os tiros foram
certeiros, premiando o extremamente superior filme pernambucano O Velho
O Mar e o Lago sem medo de ser chamado de bairrista, mesmo repetindo-o
em filme, direção, ator e fotografia. Premiando dois filmes
que conquistaram o público e que possuem inegáveis qualidades
de realização como Sinistro e Palíndromo.
E ainda encontrando chance de reconhecer a ousadia de um A Visita (embora
o prêmio de montagem para este e de roteiro para Sinistro parecessem
estranhamente trocados...) ou a proposta de Distraída pra Morte.
Entre os não premiados, se talvez BMW Vermelho ou Os
Outros merecessem lembrança, não são tão
surpreendentes quanto a não-premiação das atrizes
de Célia e Rosita, em tudo superiores à vencedora.
Os outros filmes devem estar felizes de terem sido exibidos. Na animação,
é bom ver que Cavaleiro Jorge suplantou as anedotas de Os
Idiotas Mesmo como melhor roteiro, e é difícil discordar
dos outros prêmios todos para Almas em Chamas.
Só que a coisa ficou realmente preta
na premiação dos longas. Difícil lembrar de uma premiação
mais completamente equivocada do que esta. Em alguns momentos parecia
até que o júri estava brincando, premiando tudo que havia
de pior em cada filme como forma de chamar a atenção para
seus defeitos. Em ficção, chegou a ser ridículo:
a fotografia de Domésticas é um de seus maiores equívocos
(e havia Latitude Zero e até Aleijadinho de melhores);
a atuação de Maurício Gonçalves é possivelmente
um dos motivos da falta de empatia do seu personagem com o público
(e havia Cláudio Jaborandy, excepcional em Latitude Zero);
o elenco feminino de Domésticas, premiado coletivamente
como melhor atriz, não constrói um só personagem,
só tipificações cômicas (e havia a exuberante
atuação de Dira Paes se é para se falar de comédia,
ou a de Débora Duboc em termos de drama). Se a premiação
quase completa do Bicho de Sete Cabeças dificilmente pode
ser considerada absurda pela fraqueza da competição no geral,
poderia se usar os prêmios acima ou alguns outros para reconhecer
em Latitude Zero (fotografia, elenco, montagem) e Casamento
de Louise (acima de tudo, atriz, mas talvez também roteiro)
qualidades que os diferenciam de um Cristais Debaixo do Trono (no
fim os 3 ficaram sem qualquer prêmio), ou até mesmo de Aleijadinho
ou Domésticas, dos quais os dois filmes citados acima
jamais poderiam ficar abaixo.
Mas foi no documentário que o júri
fez a festa! Premiou a trilha de O Sonho de Rose, talvez seu mais
equivocado componente, que só poderia perder para "Pior Narração
em Off". Não feliz com isso, reduziu Babilônia 2000 a
dois prêmios técnicos, quando ele é tão claramente
o melhor dentre os filmes. Um deles especificamente prova que realmente
só a falta de filme mais elaborado no quesito pode justificar esta
premiação (fotografia), e o outro, bem o outro é
simplesmente bizarro (roteiro). Mas foi na consagração do
fraquíssimo A Vida em Cana, um filme que chega a ser simplório
na sua desestruturação completa de qualquer narrativa ou
posicionamento, que o rei ficou nu. Pois na verdade, realizado pelo filho
de um usineiro, o filme é, no fundo, uma poética defesa
do trabalho quase escravo dos trabalhadores rurais da cana.
Se isso não resumo o festival de contradições
que é Recife, sabe-se lá o que resume: o Festival que teve
como slogan "Um Festival de Raça" premiou um filme escravocrata.
Inacreditável.
Eduardo Valente
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